13 de outubro de 2013
Mais um dia dos professores chegando. E eu tenho me questionado muito ultimamente se nossa profissão está em seus estertores existenciais. São tantas angústias, preocupações, constatações melancólicas… Tudo acabou culminando em uma crise “profissexistencial” em uma sala de 3º ano na última semana… Tentarei aqui compartilhar toda a dor que venho sentindo por perceber que possivelmente estejamos chegando ao fim, como carreira. (Ou, como disse na sala, talvez esteja na hora de EU parar? Não sei…)
Antes de mais nada, é importante que se diga que o que será colocado a seguir não é direcionado a qualquer instituição, turma, aluno ou família em particular. É uma conjuntura global e antiga que a cada dia só piora. Eu olho ao redor e só vejo maiores dificuldades, incompetências e insensibilidades de todos os envolvidos com Educação. Até mesmo por parte de alguns colegas de labuta. Mas estes mais por conformismo ou medo do que por outra coisa. Em geral, o que se vê é a desvalorização do que seja REALMENTE lidar com Educação em nosso país.
Comecemos pelas instituições: hoje há uma moda de “excelência” aparente muito obsessiva, mas que passa unicamente pelas obrigações mais rasteiras dos professores e coloca a lógica pedagógica em segundo, não, em último plano, por vezes. A preocupação é com farda para professores (o que deveria ser uma opção, jamais uma obrigação), material de rede nacional (que eu, profissional na minha disciplina, não posso avaliar e rejeitar, se for o caso…) lousas digitais, livros digitais, presenças digitais… e continuamos manetas na arte de conhecer o estudante, suas necessidades e angústias. A frequencia digital, por exemplo, tão cheia de “segurança” e “sofisticação”, serve apenas para que cada vez menos individualizemos o alunado e realmente identifiquemos quem é quem. Professor tem de tentar conhecer seu aluno pelo nome. E já é tão difícil, com a quantidade de turmas e poucas aulas semanais em cada uma delas (no caso do Ensino Médio, especialmente)… E aí vão tirando a chamada, que te permite saber mais rapidamente os nomes desses garotos. Porque, só lembrando, eles foram registrados com um nome, não com um número ou um chip.
E a tecnologia que facilitou a vida em todos os setores? Gráficas, Secretaria, setores variados que agora trabalham muito menos e não tomaram para si os serviços burocráticos dos professores… Ao contrário, os prazos para nós diminuíram, mesmo que agora eles não digitem, não lancem notas… Fazemos tudo isso e em menos tempo ainda… E ninguém lembra de que deveria ser poupado do professor qualquer trabalho burocrático, para que ele se dedicasse exclusivamente ao que lhe diz respeito: lidar com os alunos e sua aprendizagem. Mas a ideia é de que colocar “mais uma coisinha” para o professor não custa nada… E reclame! Você será o “retrógrado”, o que “emperra o processo”, o “desatualizado”…
E quando algumas escolas se posicionam favoráveis a atitudes erradas da família ou dos alunos? São “clientes”… A pior filosofia possível para uma escola porque, afinal, o “cliente tem sempre razão”… E isso em Educação é mortal. Professores são não apenas questionados (e podem ser, porque não somos senhores da razão), mas “acareados”, expostos, enganados. Sempre há quem queira dar suas convicções particulares (quase sempre absurdas) sob a ameaçadora frase: “Professor, alguns pais/alunos vieram reclamar…”. Mas… Que pais? Que alunos? Ah, eles nunca têm nome… “É para resguardar o aluno de possíveis retaliações”. Que é isso? Eu sou um professor ou um terrorista? Então é assim? Escutar, calar, mudar para o que se deseja que a escola faça, sem nenhuma argumentação? Discutir com reclamantes anônimos? Valei-me, George Orwell! É 1984 no século XXI!!
O que vale é aprovar o aluno, porque, passando para as famílias agora, o que interessa é ter o “retorno do investimento”. Sim, “eu paguei, ele tem de passar”. Reparem: o filho tem de passar, não necessariamente aprender. “Não se pode passar um ano investindo alto para o menino reprovar”. Opa! E sou eu quem tem de fazer a criança/jovem querer estudar? Sou eu que tenho de curar as deficiências que os anos anteriores de empurra-empurra para a série seguinte criaram? E o pior: quando o aluno capengamente termina o 3º ano, mas não passa na faculdade dos sonhos, a culpa, para pais e escola, é dos professores… Ah, tá. E mais: eu tenho que substituir o trabalho dos pais de acompanhar os filhos no processo educativo porque eles passam o dia e a noite fora de casa? Bolsa-família pra nós, já, então! É muito filho para dar conta, sem o devido salário!
Isso sem falar nos pais que incentivam seus filhos a destratarem professores. Mandando? Não… não tanto. Mas agindo como se os professores fossem seus “empregados”, desvalorizando seu trabalho, tratando-lhes como um prestador de um serviço qualquer que não o fez corretamente, quando o filho não tira boas notas. Professor, para a maioria das famílias, é um inimigo a ser vencido. É o obstáculo entre o orçamento anual e a aprovação. E haja desacato: ligam para os filhos na hora da aula, aparecem à porta e interrompem para chamá-los, questionam métodos, avaliações e posturas profissionais sem jamais terem tido uma formação pedagógica, na esmagadora maioria das vezes. Basta que seu filho não tenha o tão esperado… aprendizado? Não! RESULTADO. Os pais têm de ter consciência de que ser um ótimo filho não quer dizer necessariamente ser um ótimo estudante. Há seres humanos maravilhosos que simplesmente não gostam de estudar e precisam receber em casa, e não na escola, o valor do conhecimento. O processo é conosco. A filosofia vem de casa.
E falando nos filhos, vamos a eles. Longe de mim querer que professores sejam tratados como em certos países orientais, em que tais profissionais sequer precisam se curvar diante de imperadores (não é lenda, é verdade!) ou esperar que recebamos os maiores salários do país – embora merecêssemos estar entre os melhores, sim! Eu falo de algo bem simples: respeito. Respeito pelo conhecimento, pelos anos a fio sentados em um banco de Universidade e em casa estudando o que e como transmitir aos outros. Respeito pela presença de alguém que pode até não falar sobre o que se gosta, mas que deve ser ouvido independentemente disso. Respeito pelo ser humano, enfim. Não se vira de lado ou se dá as costas, não se dorme ou mexe no celular diante daqueles a quem devemos respeito, em situações convencionais. Por que conosco é diferente? Porque o aluno pode “escolher” que aula assistir? Por que eu tenho que deslocar energia de minha aula para a investigação de quem está usando o celular? Por que eu tenho de pagar, com a afronta (mesmo involuntária, às vezes) do aluno, pelas horas por ele perdidas em frente a redes sociais, televisão ou jogos virtuais?
Alguém ousou dizer a esses jovens que eles podem chegar à hora que desejarem e sair a todo instante, sob os mais variados pretextos (e mesmo não sendo pretextos… o que aconteceu com a capacidade do ser humano em controlar seu aparelho urinário e sua sede? Eles saem durante um filme, cerimonial, celebração ou jogo para irem ao banheiro ou beber água?). Quem lhes disse que não precisam fazer silêncio enquanto o professor não começa a matéria propriamente dita? Quem disse a eles que não precisam levar o material para a sala mesmo no dia em que a bolsa estiver pesada?
O que deve ser dito a eles, pela família e pela escola – e não pelo professor, porque o aluno tende a ver nossa observação como uma declaração de guerra – é que APRENDIZAGEM NÃO É LAZER. Dela o lazer pode e deve fazer parte, quando o PROFESSOR, treinado e capacitado para isso, achar que é a hora de “dar uma variada” e usar um método diferente. Mas aprendizagem não é diversão. Assim como quando alguém quer moldar o corpo, exige-se renúncia, sacrifício, suor, até lágrimas. A sala de aula não é lugar apenas para fazer amigos ou brincadeiras memoráveis. Isso é um ingrediente, não uma finalidade. Os alunos de hoje querem passar de ano sem ler um livro, sem comprar material (mas o celular de última geração está ali, escondido atrás ou dentro da mochila), sem anotar, sem prestar atenção, sem ter um único dissabor. O máximo de resultado com o mínimo de esforço, eis o lema da maioria deles. Querem trabalhos que não deem trabalho, provas que não provem seu conhecimento e conceitos que não os conceituem (pois não se pode “rotular os alunos”). Ou seja, fazer NADA e receber um boletim lindo, que lhes permita um presentinho dos pais e a repetição do processo no ano subsequente…
O que deve ser dito a eles é que o professor é uma autoridade, sim, que também pode ser amigo e fraterno, mas não seu responsável. O que me incomoda em ser chamado de “tio” por esses jovens não é o fato de essa alcunha conferir um certo grau de velhice (embora seja de bom tom não dar a entender isso). O que incomoda, realmente, é a ideia subliminar de que o “tio” é um protetor, que não vai deixar nada de errado (leia-se: reprovação) acontecer com ele. Não é o que eles pensam, na hora em que dizem, claro. Mas é o que acaba passando. Eles esperam que nós o protejamos das broncas dos pais, do bullying dos colegas que passam de ano, dos traumas de uma nota baixa… mas sem fazer nada. Temos que ter “peninha” dos nossos queridos “sobrinhos”, “pobres coitados” que “não precisam saber Física porque serão estilistas, ou não devem ser cobrados em Literatura porque farão engenharia…”. Pode até ter um fundo de verdade. Mas faz mal? Que coisa! Parem de estimular a esses jovens a se acomodar!
Em suma, quero ser respeitado como profissional. Que minha palavra seja válida e aceita como a de um médico, de um advogado, de um engenheiro… categorias às quais se escuta sem questionar ou, mesmo reclamando, todos admiram. Quero ter minha preparada e abalizada palavra de educador aceita e valorizada pela escola que me contrata, pela família que nem me conhece (mas deveria) e pelo aluno que me vê em sala. Que não goste de mim? Tudo bem. Mas que me escute DEDICADAMENTE, e não com o ridículo discurso do “eu escuto é com os ouvidos” ou do “Dê sua aula pra quem quer e me deixe quieto aqui, que não estou atrapalhando”! Eu não dou aula de costas, dormindo, lendo outra coisa ou mexendo no celular. Por que tenho de ser complacente com quem faz isso em minha aula?
Sinto, a cada dia, que não atinjo mais meus alunos. E esse foi o motivo de minha crise na sala a que me referi no começo desse texto. Chorei. Sim, chorei. Mas não porque eu me julgue incompetente, ultrapassado ou chato. Mas porque o mundo mudou para pior em relação ao tratamento para com o professor, e hipócritas querem que eu veja isso como uma evolução. Como se isso fosse o natural e eu que estivesse em desacordo com os dias atuais.
NÃO!! São os dias atuais que estão em desacordo com o que é certo para a Educação. E é por isso que eu disse, entre sinceras lágrimas, para a turma boquiaberta: “Acho que está na hora de eu parar, pois eu não consigo mais me fazer entender para vocês”. Bateu, pela primeira vez, uma vontade de ter a idade para me aposentar. Antes que, tal qual o personagem Winston Smith, do citado clássico “1984”, de George Orwell, eu seja convencido de que eu é que sou o problema e me pegue, como já vejo infelizmente alguns companheiros de profissão fazendo, reproduzindo o discurso dos patrões ou simplesmente dizendo: “Roderic, eu já fui como você. Acredite, não vale a pena”. Pois eu acho que vale a pena espernear, sim. E é só por isso, apenas por isso, que a vontade de me aposentar já passou. Porque AMO o que faço e creio que eu posso dar murros (minha teimosia em ensinar e cobrar do aluno, da família, da escola) em pontas de facas (os alunos, a família, a escola, a ideia errônea de educação de hoje) e valer a pena. Eu perco minha mão, mas posso amolar algumas facas e fazê-las um pouco melhores do que são… Afinal, apesar de tudo, com muito ORGULHO: sou PROFESSOR!
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