30 de março de 2013

 

Cá estou, sem ter muito o que falar para mim mesmo. Percebo que não há muita diferença entre morrer em vida, para a vida ou sem vida. Na verdade, todas essas “mortes” estão intimamente interligadas. Morri quando meu pai morreu. Desde então, sou um arremedo de expectativas vãs, minhas e alheias. Eu bem que tento, esforço-me bastante, procuro fazer de minha estada aqui algo positivo para os que me cercam, especialmente os filhos, os amigos e os alunos. Ora, se Deus me deu o dom de ter boas ideias e nível intelectual, devidamente aperfeiçoado por meu pai, por que não fazer disso algo que me motive viver?

Sim, seria bem fácil, útil e conveniente. Até por ser um sobrevivente a depressões, angústias e algumas tentativas fracassadas de felicidade neste plano. Casei 3 vezes, não dei sorte (ou terei sido incompetente?). Fato é que meus relacionamentos a dois sob o mesmo teto foram todos interessantes por um tempo: uns mais, outros menos, de acordo com o tamanho da paciência delas e da minha capacidade de lidar com meus erros – na verdade, acho que foi justamente o contrário, a razão das separações. Além disso, uma série de namoros frustrados, pela ganância, pela traição, pela incompreensão, sempre delas, por incrível que pareça. Depois que amadureci, percebi que teria de parar de procurar alguém como eu queria, mas simplesmente alguém que me aceitasse como sou.

Mas a personalidade feminina, tão adorável, é também cruel: não basta você ser 90 por cento do que ela sonha. Ou é tudo ou nada. E eu não sou fácil de abrir mão das coisas que mais as assustam: ser verdadeiro, diferente e underground. Para elas, tudo isso deve ser “reversível”, porque atrai, encanta, até tem um certo charme. Mas não para uma relação fixa. No máximo, para uma aventura. E sou tão pouco aventureiro quanto Ulisses, de Joyce, ou Alberto Caeiro, de Pessoa.  E fui ficando só. Não que não me permita viver um grande amor, mas para tal, só me serve grande, de ambas as partes. E às vezes a parte toda foi minha, e às vezes foi dela, a que me procurou ou aceitou. E para que ela me seja grande, ela tem de me ver e aceitar assim: irreverente, depressivo, criativo, mórbido, intenso, familiar. Tudo tão contraditório quanto minha cristandade: um agnóstico cheio de temor a Deus. Mas as mulheres não parecem entender. Ou se entendem, assustam-se. Ou se não se assustam, querem me lapidar. Mas sou uma pedra bruta, e prefiro sê-la. Essa pedra que quebra vidraças, edifica templos, serve de brinquedos pueris e arrebenta cabeças . E isso é demais para a personalidade feminina, tão afeita ao comando da casa, da família, do lar. Não faço questão do comando, mas também não sou lapidável. Duro esperar que uma santa me queira assim. Já disse uma vez que sou um Amado (e amante) que espera sua gata Gattai. Ali, ao lado, apoiando tudo, sendo intelecto com ele, por ele, apesar dele. Improvável mistura de rebeldia e pacifismo, tal como eu.

Resta-me aguardar o encontro com meus pais, o Celeste e o Terreno. Espero que ambos se encontrem no mesmo lugar, embora nem eu mesmo saiba se irei integralmente para um único lugar, após o rompimento de meu cordão umbilical terreno. Estou, como todo ser humano, com um pé aqui e outro ali… Como diria o Régio, “Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém”. Ou algo assim, não lembro. Não sou um reprodutor de textos, meus alunos já devem ter visto isso. Erro propositalmente os resumos, meu interesse é que leiam uma  história que lhes encante, não ser o melhor professor de todos os tempos. Se não fujo do teor central da história, está bom. Prefiro lhes revelar como a poesia nos mostra um mundo novo. E creio que consigo. Está de bom tamanho. Não sou exemplo para ninguém, vivo dizendo. O exemplo morreu na cruz. Eu abro portas. A escolha de entrar é deles.  Mas isso muitos também não entendem. Nem os diretores das escolas religiosas, nem os pais… só eles, os jovens. Talvez por isso eu os encante, desencante e torture. “Como esse cara tão chato e cheio de regras pode me dizer coisas tão relevantes?” Pois é. Eu sou essa coisa contraditória, que não diz “Seja assim”, mas “Pense nisso e veja o que você acha”. E me apercebo que isso talvez também não agrade a Deus, ou às mulheres, ou mesmo a meu pai. Mas essa energia do olhar deles como quem diz: “Vou procurar ler esse texto em casa” ou “Será que descubro mais coisas desse autor?” é a que me move fazendo o que faço, apesar do desrespeito crescente à nossa classe, que é afrontada pelos patrões e pelos covardes nela infiltrados.

E para tudo isso, penso. E escrevo. E sei que não sou gênio, mas estou longe de ser um ignóbil, também. Sei que digo coisas interessantes, que cutucam feridas, que instigam, que fazem as pessoas ressoarem um “ai!” em suas almas. E isso é de quem tem algo a deixar neste mundo. Sei que se tiver a sorte de ser publicado, um dia, estarei na galeria de bons escritores. Nenhum Machado ou Poe, ou Shakespeare. Nem mesmo um Cruz e Sousa ou um Augusto dos Anjos ou um Guerra Junqueiro. Mas não serei esquecido, se a fortuna (financeira ou fortuita) me aprouver e alguém for meu cúmplice na hora de publicar o que deixei. E isso é outra tarefa que não agrada a uma mulher que não minha imaginária gata Gattai (Suspiro). Creio que não devo me preocupar tanto com isso, ou morrerei antes que devo…

E aí me vem à mente um questionamento que já deve ter passado na cabeça de muitos dos que me leem agora: como repercutirá minha morte para os que me conheceram, leram ou viram em alguma situação? Serei digno de elogios, impropérios, resmungos, suspiros ou mugidos? Todas essas manifestações têm sua razão de ser, ou importância para mim… Mas eu não verei, provavelmente. Sei que não queria ser esquecido. Entrar para a História como um Camões, um Baudelaire ou um Dumas eu não vou. Mas se eu marcar alguma história, se eu for citado em rodas por um tempo, se eu for lembrado por alguma octogenária avó dizendo aos seus netinhos que devem ler “Memórias póstumas de Brás Cubas” ou “Ismália” usando um de meus argumentos, já estarei feliz.

Não pretendo a glória eterna. Mas ser eterno, de alguma forma, na mente de alguns que sempre me foram eternos, como meu filhos e alunos. Riqueza para mim é isso: é saber que ao tomar conhecimento da minha morte alguém diga: “Desgraçado, deveria ter se cuidado mais, para a gente aproveitar mais da inteligência dele”. Estaria bom demais. E aí percebo que, para as mulheres, isso não é o suficiente. Ai, minha gata Gattai, onde você se escondeu? Pais? Onde estão? Cansei de brincar. Levem-me para casa…

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