12 de agosto de 2012

 

PRIMEIRO ATO – MEU PAI

Meu pai eu o perdi há 27 anos. Se ele fosse vivo, completaria 111 anos em 31 de agosto próximo. Porque ainda conto os anos? Porque em minha mente adolescente meu super-herói jamais seria tirado de mim. Super-herói, sim, indestrutível, mentor intelectual, mestre, psicólogo, curandeiro, nutricionista, professor, guru e, quando necessário, carcereiro. Carcereiro de meus ímpetos, devaneios juvenis e momentos non-sense. Lembro de uma noite, aos meus 10 anos, em que tive uma dor de ouvido monstruosa. E de minha mãe falar que a única farmácia aberta 24 horas ficava no centro da cidade, a uns 30 quarteirões dali. Ainda os chamei para dizer que a dor havia passado. Mas meu pai notou meu sacrifício, beijou minha testa, disse “já venho” e partiu para o dele. Cerca de duas horas mais tarde, alta madrugada, ele chegava com as gotas na mão. E no corpo também, chovia torrencialmente. Meu pai fazia tudo tão certo que, mesmo sem saber, fazia-me bem. Sua morte, tão dolorosa para mim, aos meus 15 anos, por incrível que pareça, chegou na idade certa para eu me rebelar, virar gótico, fã de rock’n’roll e meio depressivo. Imaginem ser tudo isso hoje, depois dos 40? Rebelde tardio, gótico em tempos não-recomendáveis de se andar à noite – como pernoitar no cemitério São João Batista nos dias de hoje? – , roqueiro de bandas pífias. Não… ele tinha de morrer nos anos 80. Sábia morte, mesmo involuntária.

SEGUNDO ATO – EU, PAI VIVO.

Uma coisa sobre a qual eu sempre pensei foi no peso de carregar-se o nome de alguém com o adendo “Filho” ou “Neto”. Pensem na responsabilidade de ser a continuação de tudo o que o nome de um bom pai representa! Agradeço a ele esta sábia decisão: não fui “Filho”. Nem fiz isso aos meus. Talvez para eles o problema fosse outro: não carregar as bolas acorrentadas de meus erros. Fui e sou um pai apenas razoável. As circunstâncias dos momentos conturbados nos relacionamentos que tive me levaram a ausentar-me de casa antes que meus filhos tivessem consciência da vida. Primeiro, Iasmyne. O que de bom pude dar a ela foi o suor que me foi devidamente cobrado, quando o salário reduzia. Cada dia em que a fome quis me vencer por algumas horas era compensado com a constatação de que ela vivia dignamente, apesar das dificuldades. E também dei-lhe uns bons genes para o estudo e a atitude firme. É pouco, eu sei… Mas o amor, esse não tem limite. Por Emanuel, que nasceu de meu coração, mas não de meu sangue, pude ocasionalmente repetir o que foi feito por mim, mormente na adoção, simbolicamente numa caminhada menor (cerca de 12 quarteirões), sem chuva mas com igual disponibilidade em nome da medicação. E ainda sobrou amor. Esse a quem dedico a meus alunos, todos filhos queridos.

TERCEIRO ATO – EU, PAI MORTO

Entre os dois filhos registrados, perdi Ícaro. Sei que aqueles que me leem agora e perderam um filho sabem que não há dor maior. Prematuro, finado em poucos dias, ensinou-me também muitas coisas. Entre elas, que a violência da quebra da sequencia lógica e temporalidade de quem morre primeiro nos deixa confusos, doentes e… fortes, por mais estranho que tal coisa pareça. E ele levou levou o restinho das sensações de amor que me sobraram, dentro de seu caixãozinho, que mais parecia uma urna com as cinzas de meu próprio cadáver.

QUARTO ATO – O PAI DOS PAIS

As cortinas um dia se fecharão quando, no alto, eu reencontrarei meu pai, Ícaro e o Pai dos Pais. Se lá não me for permitido ficar, já terei vivido meu paraíso na Terra: amei todos os meus filhos.

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