02 de novembro de 2015

  • Dedicada a todos os que perderam alguém, para a morte ou para a vida, no ano que ora vai se aproximando de seu fim, também. E às almas dos que fizeram, de alguma forma, parte de minha história, e partiram em 2015; em especial minha prima Alanir Moreira e minha ex-aluna Ester Feijó.
  • Preferencialmente, este texto pode ser lido ao som de qualquer faixa dos álbuns Seventeen Seconds, do The Cure; Unknown Pleasures, do Joy Division; Mask, do Bauhaus ou Dawnrazor, do Fields of tje Nephilim.

 

 

No dia em que aqueles que tiveram seu fim são mais fortemente lembrados, ainda que biblicamente se fale que os mortos devem enterrar seus mortos, pego-me a analisar a amplitude de tal dia. E da própria Dama da Finitude.

 

Deixar morrer, matar, ver a morte, conformar-se com ela, sufocar…  quantas mortes nos vêm dia a dia, quantas causamos e  por quantas sofremos… O processo de mortificação parece estar mais presente na vida do que a própria essência do viver, em si.

 

Diariamente lutamos para nos recuperarmos da sensação de perda de alguma coisa: gente morta, gente viva, bens, princípios, esperança, força física, aparência. De maneira dolorosa e estranha, todo dia que nasce apresenta algo para tentarmos revitalizar, antes que o próprio dia, inexoravelmente, também morra. Estamos fadados a deixar partir, assassinar ou tentar impedir a morte de alguma coisa a cada segundo. E ficaremos loucos se pensarmos que cada um desses segundos de vida pela qual devemos dar graças é o mesmo que regressivamente passa para a nossa própria partida.

 

Essa angústia compassada justifica (ou ridiculariza ainda mais) nossos subterfúgios quase inúteis para aparentarmos uma juventude perdida: são tentativas insanas, por vezes, para ludibriarmos a Morte, como se nos fantasiássemos e Lhe disséssemos: “Volte mais tarde, não é a hora, ainda; sou jovem”. Na verdade, deveríamos (e incluo-me nisso também) gastar mais tempo em viver o que temos de modo satisfatório do que em tentar evitar a chegada do fim. Isso, é claro, não significa ser ensandecido ou displicente. Apenas destemido.

 

Deve ser por isso que as pessoas evitam ir a cemitérios, falar de morte, admirar Arte que a represente ou dignifique. Porque as pessoas não querem confrontar seu temor irracional por um destino certo, conclusivo, definitivo. Essa atitude de enfrentamento é para os que não a temem, por aceitarem sua irrefutabilidade, ou para os providos de fé num porvir melhor, devido a suas crenças religiosas. Talvez agora aqueles que não entendem meu gosto por qualquer coisa relacionada à morte, dor e escuridão, dentro da cultura gótica, sobretudo, possam finalmente entender. No fundo, não é masoquismo ou tendência à depressão. Nem mesmo uma mera excentricidade (embora eu tenha especial predileção por ter gostos diferentes de todo mundo, confesso). É satisfação por ter, dentro de si, uma tranquilidade, ainda que conflituosa, de que não há como escapar do término da vida. Aprendi isso com as mortes de meus pais adotivos e de um filho.

 

E cabe um momento especial para tentarmos entender as corresponsabilidades da morte. Quando relações se finam, por exemplo, dificilmente esse “se” pode ser apassivador ou reflexivo, simplesmente; muito menos uma representação de indeterminação de sujeito, posto que é raro ser desconhecido, tal sujeito: os relacionamentos finam por culpa de uma das partes, ou por culpa mútua. Mas há, invariavelmente, um ou mais sujeitos, e não é a própria relação.

 

Ao olhar para meu passado, identifico claramente aquelas emoções compartilhadas em casal ou com amigos das quais fui algoz, ou vítima; ou, ainda, cúmplice da morte. Mas o mais estranho é que nem sempre (aliás, quase nunca, eu diria) tal sobriedade de visão é tida pelo outro lado da relação. O mais provável é sempre este esquivar-se da possibilidade de ser, ele também, responsável. E isso se torna pior se for o único. É mais fácil pôr a culpa no companheiro do que assumi-la, ainda que parcialmente. E, tenho absoluta certeza, grande parte do luto advindo do término das relações amorosas vem daí: da transferência de uma responsabilidade que não é sua para si. Saber que não é culpado e ouvir que a culpa é sua. Um paradoxo tranquilizador para quem vai, disposto a não olhar para trás, mas torturante para quem fica. É por isso que procuro sempre, por mais doloroso e malvado que pareça ser, reconhecer quando eu é que estou pondo fim a qualquer tipo de relação: sentimental, fraternal, profissional. Até para me afastar da Fé eu me desculpei com Deus, pois a falha não é dele. É noventa por cento minha e dez da humanidade sem divindade que existe nas Igrejas e Ritos todos. E essa minha atitude naturalmente honesta (não vejo mérito nenhum em ser verdadeiro, trata-se de uma obrigação) se torna um peso quando vejo que a esmagadora maioria não faz o mesmo. Assim, tenho de, à força, carregar meu fardo (que já me é estafante, para a consciência) e aquele que o outro lado não quis assumir.

 

Vendo de outra forma, é certo que não detenho direitos exclusivos sobre o absolutismo das minhas verdades. Algumas pessoas que por minha vida passaram e de mim afastaram-se ou foram afastadas talvez pensem que fui, sim, o único, ou que, por ser o maior culpado, “mereça” carregar tais fardos sozinho. Mas esse é um tipo de mérito que não vale a pena discutir se não houver abertura e paciência para debates; muito menos um a que se possa atribuir uma medalha de honra. E, dessa forma, fica o dito pelo não dito e sempre um lado sai mais fortalecido que outro. Realidade praticamente inevitável. Como já disse, assumir a autoria ou coautoria de uma morte não é, de modo algum, algo fácil.

 

Também dói a morte do que poderia ter sido, ou seja, fracassar ou assistir ao fracasso de algo que sequer foi tentado. Em qualquer campo da vida. Muitas vezes, somos levados a desistir antes de começar por receio de perder tempo, por medo de repetição de insucessos, por covardia mesmo, enfim… há várias razões. E esse tipo de morte, para os que adoram perguntar-se “E se…?” é das mais angustiantes. Porque sem respostas. Porque sem chance de retorno, pelo menos, do mesmo instante decisivo. É por isso que normalmente arrisco. Não consigo ver o fracasso como algo pior que a dúvida. E embora nossa essência humana e naturalmente falha quase sempre conduza a ele, prefiro pontos finais aos de interrogação.  Até porque pelo meio do processo há reticências bem interessantes…

 

Enfim, deixo estas reflexões no dia de Finados para que possamos nos imaginar mais vivos, por mais incrível e antagônico que pareça. Preste respeito e luto a seus mortos: pessoas, sentimentos, fracassos. Mas lembre-se de que não podemos desistir da vida. O pior suicídio é o dos ideais, o da vontade de ressurgir, ainda que lenta, dolorosa e solitariamente, graças, por vezes, à incompreensão alheia de que a superação sempre é melhor quando compartilhada. Assim, depois de estarem mais animados e dispostos a revitalizarem seus dias (e perdoem-me o trocadilho infame a seguir, não seria eu, se não fizesse “ao menos” um, nem que no fim – ops – do texto), descansem em paz.

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