A crônica será sobre Educação, mas vou começar falando de futebol. Acho que um jogador como Rogério Ceni (permitam-me ampliar o conceito de “goleiro”, embora todo goleiro seja um jogador, no fim das contas) merece todas as homenagens que recebe. Esqueçamos o clubismo. O cara é excepcional: defendia bem, batia faltas, pênaltis, 131 gols na carreira, jogou em um clube só, e por amor – até os mais indolentes em relação a futebol entenderão a importância disso, nos dias de hoje. É articulado, inteligente, tem excelente gosto musical e era um profissional obcecado (no bom sentido do termo). Tudo bem, tudo bem, ele é um pouco arrogante, às vezes, talvez o maior diferencial entre ele e outro mito brasileiro recente, na sua posição: São Marcos. Mas, definitivamente, entra no rol dos goleiros mais marcantes do país, ao lado do palmeirense já citado, e de outros gênios da posição como Ronaldo, Taffarel e Gilmar dos Santos Neves.
É bem verdade que o Inter teve mais boas lembranças que ruins, dele. Afinal, nas duas Libertadores que ganhamos, enfrentamos os são-paulinos, e com ele no gol. Uma vez na final; outra, na semifinal. Vencemos ambos os embates. Mas, por outro lado, o São Paulo é o nosso maior algoz no Brasileirão nos últimos 15 anos, e ele sempre por lá. Enchendo o saco. Mas, voltando a não ser clubista, é inegável o posto dele como um dos cinco maiores goleiros no Brasil, em todos os tempos. Um mito, de fato, como diz sua apaixonada legião de fãs.
Eu não vi o jogo de despedida na noite desta sexta-feira (ontem). Mas vi vários momentos antes e depois do jogo, com direito a apresentações de bandas de rock (eu não disse, que ele tem bom gosto?), imprensa mundial, lágrimas de torcedores já saudosos. Um megaevento. Uma saída de cena magistral.
E aí me bateu a vontade que, em sequência, me inspirou a escrever este texto. Queria que minha aposentadoria, minha retirada dos “gramados” da sala de aula fosse assim, como um megaevento. Não que eu tenha sido um Rogério Ceni dos quadros-negros e livros. Longe disso. Mas eu desejaria, no dia em que eu pendurar os pincéis, celebrar assim, como fez o magistral goleiro: com estilo.
Já imaginaram? Entrar numa quadra de alguma das escolas onde trabalharei meus últimos dias, devidamente preparada como uma gigantesca sala de aula, com direito a uma exposição em telão de trechos de minhas “melhores” tiradas, cacoetes, mancadas e broncas para abrir o evento? E no palco, improvisado ou não, uma banda tocando algumas das músicas que coloquei meus pupilos para cantar em inglês, devidamente acompanhada por um coral de ex-alunos chorosos (tanto quanto eu, nessa hora, tenho certeza) … Lá pelas tantas eu não resistiria e daria uma de penetra, dividindo o microfone com o vocalista, berrando uns rocks legais…
Depois iria para o local onde já teria sido colocado uma lousa gigante no lugar do telão, a fim de ministrar minha última aula de Literatura. Uma visão generalizada da história de nossa poesia e prosa, com direito à leitura de alguns de meus textos favoritos (“A carta de Pero Vaz de Caminha”, “Missa do Galo”, “Bertram”, “Mar Portuguez”, “Venha ver o pôr-do-sol”, “Soneto de Fidelidade” – aqui eu pediria para apagar as luzes da quadra e acenderia meu isqueiro, como faço sempre; talvez outros se acendessem, qual um show de rock…) e à repetição de aulas que adoro dar, como a comparação entre os repentistas e o Trovadorismo, o debate sobre o certo e o errado no Barroco (“Se eu matar o cara que vai assassinar um monte de gente numa parada de 7 de setembro, é pecado, ou não”?); a cultura gótica romântica; a diferença entre a consciência realista e o instinto naturalista para explicar a maldade humana, Simbolismo, literatura marginal, a epifania clariceana… colocaria todos para rir do Concretismo, ou cantar as músicas infantis do Vinícius. Daria uma passadinha pela literatura estrangeira com Shakespeare, Poe, Baudelaire, Pessoa… e depois encerraria com meu favoritíssimo “Ismália”, do Alphonsus de Guimaraens. Provavelmente às lágrimas, como Ceni em seu discurso final.
E assim como o craque fez no campo, eu chamaria para “jogar” comigo alguns professores com quem trabalhei, para colaborarem com microaulas tão gostosas de repassar (ou mais, até) que as minhas. Além de depoimentos cômicos ou curiosos sobre minha carreira, tanto dos profissionais como de alguns alunos. Abraços, mais lágrimas, mais sorrisos, muito mais sorrisos… Para depois dar uma “volta olímpica” na quadra, acenando pra todo mundo, enquanto os alunos de ontem e de então iriam talvez se levantar com o grito de “Oh, Captain, my captain!” ou ainda com o antiiiiiiigo “Ic, ic, ic, valeu, Roderic!!”, gestos que já aconteceram comigo, em escala menor, claro, e que me encheram (e encheriam de novo) de emoção.
Depois, o silêncio. Caminhar até meu armário, esvaziá-lo, retirar a plaquinha com meu nome, e sair pela porta principal, com a dor da incerteza de não saber o que fazer em minhas manhãs, tardes e noites, dali por diante… mas, principalmente, com uma provável sensação de dever cumprido.
Mas professores infelizmente não podem ter esses sonhos de glória e reconhecimento. Nenhuma televisão cobre a retirada estratégica de um professor antes de ele “se quebrar” ou parar de ser eficiente, como um jogador pode (e deve, tal qual nós deveríamos, se o salário permitisse) fazer. Lembrei-me, vendo a aposentadoria de Rogério Ceni, de uma excelente profissional, colega de disciplina, chamada Neuma, que surpreendeu a todos com o anúncio de sua aposentadoria quando ela ainda poderia trabalhar por muito tempo, dadas sua saúde e disposição. Ela se virou para o grupo e disse, à época: “não quero fazer como o Romário, ficar me arrastando em campo no final da carreira; vou parar enquanto ainda estou no auge”. Abençoada seja ela, que pôde fazer isso sem grandes perdas, solteira e bem estabelecida, naquele instante.
Nossa profissão, sempre “reconhecida” como fundamental e difícil, exigente de esforços físicos e intelectuais, só tem perdas, a cada ano que passa: de privilégios, de prestígio, de equiparação salarial a outras categorias. E os velhos discursos natalinos e do dia do professor são nosso único “prêmio” oficial. É um troféu que não tem muita serventia, nem mesmo para expor numa sala. Eu juro que trocaria todas as belas (e, às vezes, sinceras) palavras a nós ditas pelo retorno das férias duas vezes por ano, pela desburocratização de nosso trabalho – a fim de que nos concentrássemos somente no que importa: abrir portas de (auto)conhecimento para os alunos -, por um salário acima de categorias não menos importantes, mas menos desgastantes. Infelizmente, assim como acontece no futebol para a maioria esmagadora dos jogadores, nosso maior reconhecimento vem “apenas” das arquibancadas, digo, das carteiras na sala de aula. O que não é pouco para o coração, pois é como a torcida empurrando para irmos para cima do cansaço e dificuldades – adversários cruéis. Mas não tão eficaz para termos uma maior qualidade de vida. Para nós, continuar a carreira é mais do que uma paixão, é uma necessidade. E aí a gente fica velho e começa a delirar com despedidas para nós como a do Rogério Ceni… (risos)
Parabéns à torcida são-paulina. Deram o devido valor, consideração e respeito a seu maior ídolo durante a carreira e na hora em que ela se findou. Inveja branca de Rogério Ceni.
12 de dezembro de 2015
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