(Uma reflexão do professor Roderic Szasz para todos os colegas do magistério e demais interessados reais em Educação)
Todos os anos questionamos as dificuldades de se permanecer na profissão de professor no Brasil. Mormente no dia consagrado como o de homenagens a nós, nesse festival de hipocrisia que orienta os discursos de “sacerdotes”, “fundamentais”, “essenciais” e “injustiçados”. Esses são variados termos comuns ano após ano, como pedidos de desculpas (ou seriam deboche?) por nossos governantes e patrões nada fazerem de concreto pela categoria.
Porém, neste ano, especialmente, acentua-se um desafio que ultrapassa os limites aceitáveis da luta pelas conquistas reais. Agora, a questão é filosófica; é no cerne da essência da profissão que encontramos os maiores obstáculos para exercê-la de maneira correta e digna.
O radicalismo e a intolerância atacam com veemência a construção de uma sociedade justa e ameaçam o porvir do Brasil, mas não da mesma forma como normalmente dito: que educamos para o futuro. Enquanto os resultados de nossa labuta são esperados para o amanhã, esses radicais e intolerantes, alguns por ingenuidade, outros por absurda e inegável desonestidade intelectual, optam por destruir o nosso trabalho no presente.
O questionamento começa no não-reconhecimento do papel da família para a construção dos princípios elementares da Educação pessoal. Delegam aos professores a missão indevida de formar os homens, quando nosso papel é formar o cidadão, intelectual e socialmente; questões como moral, ética e justiça social devem ser resolvidas dentro dos seios familiares. E muitos não o fazem, mas querem resultados aos moldes do que eles gostariam que os filhos fossem. Ora, se é isso o que os pais querem, por que não o fazem eles mesmos? Porque são incapazes de polir a personalidade de um, dois ou três filhos em suas casas diariamente, mas querem que nós o façamos com 50 ou 60 crianças e jovens numa sala, vendo-os algumas horas por semana.
Porém, como a sociedade tem se tornado cada vez mais desgraçadamente conservadora, mesmo aquelas famílias que conseguem seu intento desejam que a escola apenas reproduza seus ideais retrógrados e elitistas, totalmente anticristãos (embora muitos proclamem, em alto e bom som, a sua fé) e preconceituosos. No melhor estilo “nada contra ninguém, desde que não seja mostrado aos meus filhos”, essas pessoas, que têm todo o direito de que seus filhos sigam seus preceitos familiares, mas NENHUM de exigir que a escola ensine da mesma forma, cobram que os professores deixem de ser educadores e de abrir a visão para qualquer cosia diferente do que defendem os pais, e exigem, com arrogância, que nos tornemos apenas e tão somente transmissores de conhecimento, como se esse fosse nosso único papel.
Num país marcado pela radicalidade e pelo extremismo, sectários de esquerda (de forma implícita) e de direita (de forma explícita) exigem categoricamente que defendamos os valores que cada lado crê ser o melhor. Como se tivéssemos obrigação de ter um lado. Não temos. O que não quer dizer neutralidade. Temos, sim, obrigação de mostrar TODOS os lados, o que também não quer dizer neutralidade. Com tal premissa, “fere-se” a aberração proposta pela absurda “Escola sem Partido”, que em seu discurso hipócrita sugere que devemos ser assim como estou dizendo, mas que na verdade só aceita que se propaguem ideologias e práticas defensoras do conservadorismo e dos conceitos de liberalismo e disciplina e que se refute com virulência o pensamento contrário.
Como se disciplina não devesse ser conquistada, mas imposta. Aqueles que desejarem ter a disciplina por imposição podem escolher as instituições militares para tal, onde se possui, no seu modus operandi, a formação pela disciplina. E nada há contra quem deseje essa alternativa; é uma opção da família. Mas daí a sugerir que todas as escolas devam seguir o mesmo modelo de imposição disciplinar é um absurdo tão grande como obrigar estabelecimentos de ensino a terem uma diretriz religiosa qualquer. Da mesma forma, quem deseja uma educação cristã, católica ou não, para seus filhos, que o coloque em escolas de tal formação, sem se importar com a existência de outras, de pensamento diverso. Mas para tais pessoas isso não é o suficiente. Para elas, suas convicções pessoais, por serem as da maioria, algumas vezes, devem ser obrigatórias para todos e, pior, não podem ser questionadas ou minimamente discutidas.
Em suma, a tal “Escola sem Partido” é tão somente um enorme erro (e a cada dia eu me convenço mais de que não é um erro, mas algo maquiavelicamente arquitetado) por desejar trazer aos alunos apenas um modelo de pensamento, e por recriminar os professores que mostrarem qualquer coisa discordante, ainda que não a defendam abertamente. Confundem propositalmente os conceitos de opinião e doutrinação, quando colocadas as ideias do mestre em sala. Isto é, apenas quando a ideia professada vai contra seus conceitos pessoais, evidentemente. Se não, fecham os olhos cinicamente ou até apoiam de forma explícita e revoltante.
Para piorar, esses pais, que muitas vezes não conseguem sequer educar os filhos, se acham no direito de opinar sobre Educação como verdadeiros especialistas, e ainda criticam pedagogos, educadores e pensadores que dedicaram suas vidas a estudar essa área tão importante de nossa sociedade (desde que sejam contrários aos seus princípios, claro; se forem estudiosos condizentes com seu pensamento particular, eles aplaudem, mesmo só tendo ouvido falar o que eles dizem, sem ter lido nada). Preferem acreditar, no caso recente de nosso país, num ministro de Educação com formação em administração de empresas (só no Brasil tamanha estupidez acontece) e num ator. E por quê? Porque eles defendem os ideais moralistas e conservadores que essas famílias, repito, têm todo direito de exercer em suas casas e NENHUM de exigir da escola.
Na mesma linha dos “especialistas fajutos em Educação” surgiu ultimamente a classe dos “especialistas fajutos em Arte” (mas que jamais se interessaram por arte nenhuma), que defendem com estúpida agressividade que esta deve estar, assim como a Escola, a serviço dos seus interesses pessoais. Se a Arte questionar, suscitar reflexões, ou mesmo provocar deliberadamente as pessoas a raciocinarem sobre algo diferente do que essas famílias defendem, são taxados de “não-Arte”, de “imorais” (mal sabem eles que a Arte tem como pressuposto básico ser Amoral, o que é diferente de Imoral – antes de me crucificarem, peguem um dicionário), de “violadores”, “vilipendiadores”, “pedófilos”, “depravados”, blá, blá, blá. Cansa. Cansa ver que os professores ensinam a juventude a ter olhares de respeito a toda manifestação artística (o que não significa gostar) e que as próprias famílias dos estudantes, SEMPRE EM NOME DE SEUS VALORES PARTICULARES, destroem tudo. Como se a suposta pornografia não entrasse na vida dos seus filhos pela Internet, pela televisão e até, às vezes, pelas igrejas que frequentam. Todavia, eles preferem, em sua maioria, se meter nas exposições de Arte nas quais jamais pisaram ou pisarão, tenham elas conteúdo adulto ou não, a vigiarem o que está tão ao alcance das mãos e olhares deles próprios e de suas crias.
Entretanto, há coisa ainda mais deplorável: a inversão de valores. Como se não bastassem os absurdos defendidos acima, algumas pessoas não têm tido sequer a honestidade de se assumirem como representantes dessa ideologia de retrocesso. Pregam que errados são os que defendem a igualdade, a democracia, a liberdade. Mas não, eles não dizem isso abertamente, fazem pior: dizem que ELES é que defendem isso. E reduzem toda a questão a chamarem os opositores de “esquerdopatas”, “comunistas”, “defensores da ideologia de gênero” ou outras fantasias que o valham, como se precisássemos ser alguma coisa dessas para defender os princípios, esses, sim, cristãos, de amor ao próximo, de livre expressão, de desejo legítimo e utópico (só vivo por utopias, digo sempre) de uma sociedade com respeito aos desejos individuais, sem interferência no interesse maior do bem-comum coletivo. Não temos que defender qualquer partido, gênero, linha econômica. Temos o dever de defender ardorosamente, sim, o direito de cada um pensar e fazer o que quiser, sem exigir do outro que aceite, mas também não permitindo que este outro proíba o que não se aceita, e sim que se debata. Se eu achar que isso não é possível, devo desistir imediatamente da carreira. E você, que pensa em ser professor, se achar isso um sonho absurdo, nem comece. Porque essa profissão, como dizem atualmente, não é para os fracos.
É um embate diário contra a demagogia, o autoritarismo, a burocracia, o desprestígio, a mentira e a calúnia. Sim, a calúnia. Vi recentemente vídeos em que duas tentativas de denegrir professores foram colocadas para todo mundo ver. Em um deles, compara-se uma turma brincando, num pátio, talvez filmados até por pais, em oposição a uma escola de formação militar, como se a escola não-militar fosse incentivadora de danças de insinuação sexual entre crianças. E em outro, um político do Mato Grosso do Sul vai criticar uma exposição de Arte (boa ou ruim, essa é outra questão), que trazia avisos sobre a limitação etária, mas fez montagem com crianças chegando ao museu para ver outra, ou estando em diferente local do prédio, como se estivessem vendo a dita apresentação para adultos, numa clara tentativa de culpar professores e o artista por algo em que não existe culpa, visto que todas as regras legais para o evento estavam sendo obedecidas.
É isso o que nós, professores, sofremos hoje. Mais do que uma desvalorização, uma campanha difamatória de nosso papel como educadores e estudiosos; viramos “doutrinadores” ou “marionetes de marxistas”, mesmo quando nem simpatizamos com essa linha política, simplesmente por mostrarmos aos nossos alunos todos os lados de uma situação. Essas pessoas se dizem defensoras da liberdade. NÃO É VERDADE. Eles só defendem a verdade que lhes interessa e que, normalmente, é uma mentira cruel e segregadora. Somos hoje vítimas não apenas de discursos demagogos, mas de ofensas caluniosas que nos proclamam uma geração de “mimimi”, quando ELES fazem o “mimimi” e torcem o biquinho (de pato?) para depois abri-lo e dizer impropérios contra aqueles que realmente sabem como funciona uma sala de aula e como a escola deve preparar para uma vida solidária, fraterna, culta e pacífica. O discurso de ódio pela tentativa de diminuição da disparidade entre as classes sociais se voltou contra nós, pois somos a última resistência à lavagem cerebral de nossa juventude que, salvo exceções, quando não está abandonada à própria sorte, sofre um processo de alienação intelectual parental. Os valores da casa de cada um são um direito inalienável, mas não podem os pais, sejam conservadores de direita ou extremistas de esquerda, quererem que esses valores particulares rejam a escola, a rua, a sociedade.
A magistral professora heroína, que morreu ao tentar salvar seus alunos de um incêndio é, sim, um exemplo. Mas até quando esperaremos que outros de nós tenham de perecer em tragédias para sermos reconhecidos? Nosso papel não é morrer por nossos alunos, embora todos os vocacionados sejamos capazes de fazê-lo. Nosso verdadeiro heroísmo é resistir a essa onda retrógrada e alienante que esteve na política desde sempre, mas que agora invade as escolas, e pior, através dos lugares menos prováveis e mais influentes: os próprios conceitos conservadores desses novos “baluartes da moral e dos bons costumes, da religião, da pátria”, conquanto, na verdade, não defendam nada a não ser o próprio umbigo e os do que pensam como eles… É uma luta inglória, eu sei. Enquanto lutamos pelo bem de todos, inclusive os dos que nos apedrejam (como o próprio Cristo ensinou), os que nos consideram oponentes, obstáculos a sua supremacia, pressionam de todas as formas, arbitrárias ou não, para que ajudemos a preservar a sociedade como excludente e mantenedora do status quo que lhes interessa.
Por fim, mais um fator desestimulante: ver que alguns de nossos antigos alunos, que deveriam ter aprendido conosco a ser democráticos, flexíveis e educados, optam por estratégias de deboche, calúnia e reprodução de mentiras que, de tanto se repetirem, passam como verdades (como a de que o artista do MAM de São Paulo teria induzido as crianças a tocá-lo, o que já foi provado que é um descalabro). Ver que essas mesmas pessoas não se miraram em nosso exemplo de tolerância, educação e respeito ao pensamento contrário, e preferem se render ao ódio gratuito e nada construtivo. E com um agravante: mal subsidiados intelectualmente, às vezes, por colegas de categoria, professores que, iludidos, alguns; maus profissionais, outros, reforçam a luta pelo retrocesso da nação.
Mas a nossa resistência, por mais que pareça inglória, é necessária. E que todo professor realmente bem-intencionado saiba que a cada aluno que o educador tire da escuridão da visão unilateral, a cada um que ele consiga tornar um pouco menos radical, a cada um que ele consiga deixar uma reflexão que possa fazer desse estudante alguém mais humano, esse profissional estará cumprindo seu papel real: o de mostrar que o mundo não gira em torno apenas de nossos desejos íntimos, e que o bem de toda a humanidade está acima (embora inclua também) o de nossa própria casa. Que o Dia do Professor aumente nossa fé nessa causa e nossa missão contra as forças do mal e da radicalidade, cinicamente disfarçadas como sendo de bons princípios.
Professor (com muito orgulho!) Roderic Szasz
15 de outubro de 2017
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