Nasceu José Maria de Jesus de Deus;

Quem assim lhe batizou foi João Batista,

Um primo em segundo grau seu,

Pastor de ovelhas perdidas

Do agreste de Pernambuco.

Os dois eram de amizade decidida,

Tinham coincidências de maluco,

A começar pelo médico que revelou

As gravidezes das duas primas:

Gabriel, da rua de cima,

Um anjo que lhes anunciou

Que um espírito as fertilizou.

 

Mas as coincidências pararam aí.

João retornou pro agreste,

Voltou a ser pastor, mas dessa vez de igreja,

Até perder a cabeça por causa de uma mulher

Que a pediu em uma bandeja.

 

Já José, depois de ter rodado

De sertão em sertão,

De povoado em povoado

Tentando ensinar as pessoas

A não ser tratado feito gado,

Findou, num mês de Janeiro,

Timoneiro de um navio em um rio,

E foi bater numa favela

De uma cidade grande e bela.

 

 

Era quase um doutor,

Entendia de um tudo:

Lei, vinho, perdão de desamor…

Poucos o ouviam,

Mas quem entendia

Dizia que ele tanto, mas tanto sabia,

Que seria um dia um novo líder,

Sem requinte ou galhardia.

 

Na favela ele falava pra quem quisesse ouvir

Mas muita gente se incomodava

Por o povo ele instruir,

Porque ele não dava satisfação

A qualquer político, partido ou facção;

Não queria propaganda, de jornal ou televisão.

O que José Maria de Jesus de Deus queria

Era dar uma chance de fidalguia

Pra garotada da favela,

Pra mulher que só sabia ver novela

Pro rapaz que cedo ficava banguela,

Afundado na cachaça e na droga sem cautela

Fosse negro, japa ou branquela.

 

E muita gente passou a acreditar que José Maria

Queria ser um político igual ao César,

Governador do estado, que despreza

O povo comum da margem da rodovia

E dá cartaz pra uma burguesia

Incapaz de fazer uma reza

Sem pensar na própria freguesia.

 

Só que José não queria ser político,

Nem queria a favela comandar

Só pensava em tentar ajudar

Aquele povo sofrido, raquítico,

A sair daquela vida de amargar:

Salvou puta de apanhar,

Fez cobrador se envergonhar

Ajudou aleijado a se curar

Cego voltar a enxergar.

E ainda quando chovia

E o morro descia abaixo,

Andou sobre as águas e a lama.

Ajudava o povo cabisbaixo

A procurar abrigo e uma nova cama;

Virava o mundo de cabeça pra baixo

Pra diminuir aquele drama.

 

 

 

 

Lembra daquele povo incomodado

Que olhava, ressabiado,

Para aquele cara mal-amanhado,

Mas que fazia de tudo um bocado

Para melhorar a vida do favelado

Sem pedir nenhum trocado?

 

Pois aquela gente encrenqueira

E, além de tudo, fofoqueira,

Começou a ver José

Como uma ameaça altaneira

Por ajudar os sem eira nem beira

A ter uma dignidade,

Ainda que passageira,

Sem desistir da liberdade

De não dever ao traficante,

Ao corrupto comerciante

Ou ao governador meliante.

 

Um dia se espalhou a notícia

De que tanto a polícia

Como também a milícia,

A mando do César sem fé

Resolveu bater o pé

E acabar com aquela ameaça

Nem que fosse a pontapé,

Porque a sociedade como um todo

Na verdade, toda reaça,

Queria continuar explorando o povo

Como fazia antes: de rodo.

 

Contrataram um informante

De dentro da favela,

Um X-9 praticante

Pra ser o dedo-duro mazela.

E por meio de um montante,

Algo bem pequeno, uma bagatela,

Acertaram a denúncia do migrante.

 

A polícia então, numa emboscada,

Pegou José numa noite enluarada,

Espancou-lhe e deu-lhe estocadas;

Amarrou-o de pés juntos

E mãos espalmadas;

Largou-o num beco imundo

E deixou o resto do serviço

Para os que quisessem terminar.

Veio o traficante e soltou uma cusparada

A milícia lhe deu uma metralhada.

E para seu corpo dar sumiço,

O governador, do alto de seu furor,

Mandou dois soldados,

Fortemente armados,

Arremessar o corpo de José

Sem ninguém ver

(Estavam distraídos por um arrasta-pé),

Do alto de um morro,

Conhecido como Mata-Cachorro,

Pra ninguém jamais saber

Por onde começar

Aquele corpo procurar.

 

E realmente, depois de três dias

De intensa busca, choro e emoção,

Nem uma pessoa de bem sabia

Se José virou estrela-guia

Ou se partiu num rabecão.

 

Morreu José Maria de Jesus de Deus

E a favela voltou pra normalidade:

A sua compactuada marginalidade

Entre as autoridades e os plebeus.

Mas dizem por aí, corre à boca miúda,

Que se você chamar por ele com fervor

Ele ainda aparece e ajuda

Sob a alcunha de “Nosso Senhor”!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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