Na excelente e fiel (coisa raríssima!) versão cinematográfica de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, há uma cena genial em que Brás, depois de ser mandado à Europa pelo pai, após dilapidar parte da fortuna da família com a prostituta Marcela, está na proa do navio e vê sua angústia da saudade dia a dia diminuir, à medida que se afastava do Brasil e vislumbrava novas perspectivas (e mulheres!) na Europa. A cena culmina com esta espetacular frase de cinismo tipicamente machadiano: “Deus fez o mundo em sete dias; eu refiz o meu em seis”.
Bem, não refizemos o nosso em seis, ainda. E acho que não serão só dezesseis, mas também espero que não cheguem a sessenta. Ontem alguém me perguntou se eu pretendia que estas “diacrônicas” fossem publicadas, ao final da pandemia. Eu respondi que essa era, sim, uma ideia plausível, mas que preferia que elas não durassem a ponto de fazer volume e virar livro, porque a pandemia teria se encerrado e nos liberado antes. Afinal, esse processo tem deixado as pessoas temerosas, angustiadas e inseguras.
Por falar em insegurança, a manhã do sexto dia trouxe a notícia de que o Presidente da República baixou uma Medida Provisória com algumas ações para salvar a economia, especificamente nas relações trabalhistas. A mais antipática (e absurda) previa que as empresas poderiam suspender os contratos dos seus empregados por 4 meses, sem salário e recolhimento de direitos (FGTS, por exemplo), sob a alegação de que estaria resguardando os trabalhadores de serem demitidos. O mais hilário é que ele sugeriu que as empresas “compensassem” os trabalhadores com cursos, videoaulas etc. Fico imaginando os temas: “Como sobreviver sem comer”, “Aprenda a fazer gato de eletricidade”, “Se um faquir pode, eu também posso”, “Noções básicas de suicídio”… Algumas horas depois, pressionado pela pressão popular e por alguns membros do Congresso Nacional, além da imprensa, ele volta atrás e suprime essa parte da Medida Provisória.
Arrepender-se do que faz e voltar atrás é algo comum a esse senhor, aliás. Não é novidade. Já fez isso em ações, nomeações e declarações. Aqueles que o defendem dizem ser ele autocrítico e humilde. Obviamente, seus detratores, entre os quais humilde e orgulhosamente me incluo, o chamam de despreparado e perdido – na verdade, eu uso outros termos menos educados, mas vou poupar meus leitores mais pudicos. Para o primeiro grupo, gostaria de recomendar a leitura de “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. Aliás, para praticamente toda a população, porque essa obra se encaixa bem nos extremismos de hoje, já que o brasileiro adora idolatrar políticos. Fizeram com Lula e fazem-no com Bolsonaro, em duas pontas de uma gangorra ideológica.
Sem querer me aprofundar na chatice desse assunto, cheguei à conclusão que este governo seria muito bem analisado por Lima Barreto. Teríamos uma espécie de revival de “Os bruzundangas”, uma “Nova Bruzundanga”. Numa época em que as pessoas se revoltavam contra a vacina (alguém sentiu um cheiro de déjà-vu no ar?), imagine o que o brilhante carioca retrataria hoje dessas idas, vindas, desmandos e conservadorismo do governo atual. E essa teimosia das pessoas em saírem de casa, achando que tudo é uma grande metáfora, como a revolta contra uma decisão governamental obrigando as pessoas a usarem sapatos, em “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, do mesmo Barreto? Como eu amo a circularidade da Literatura… Por fim, as confusões que isso tudo acarretaria me lembram um conto de Martha Argel: “Contingência ou Tô pouco ligando”, que mostra as balbúrdias que decisões para um lado ou para outro podem causar.
A noite veio chegando, conversas com familiares e amigos por redes sociais e a primeira semana de confinamento brotando no bailão, pra desespero da população – e meu, que me vejo fazendo citação a uma música tosca dessas, prova inconteste de que, se não tomarmos cuidado, essa quarentena vai pirar nossas cabeças, mesmo. Assunto pra amanhã, se eu não me matar depois de ter feito referência tão desnivelada a tudo o mais que escrevi hoje.
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