Hoje, depois de quinze dias, saí pela primeira vez de casa. Precisava renovar as compras. Não tinha mais jeito. Lista pronta, a fim de não perder tempo, parti de UBER para um hipermercantil maior, onde haveria menos chance de faltar algum produto. Não sem antes tomar um soco na cara, do sol. Senti-me o próprio Drácula de Bram Stoker, vendo a luz queimando minhas pupilas. Para quem já odeia o astro-rei, como eu, a sensação foi muito estranha. Coloquei os óculos escuros e segui. Sim, porque, caso alguém não o saiba, o Drácula original de Stoker não explode ou se esfarela à luz do sol. Isso é coisa de cinema. Só fica mais lento, menos poderoso. Tem mais força à noite e por isso a prefere, como eu.
 
 
A primeira coisa que notei – depois de ter chegado em casa – é a diferença com que as pessoas tratam a situação. Sentei-me na parte de trás do carro, e expliquei ao motorista que era para a nossa segurança. Ele entendeu perfeitamente, e disse que estava com os vidros abaixados por essa mesma razão, já que a circulação do ar era melhor para evitar possível contágio. Ótimo, foi desnecessário pedir. Diferentemente do motorista da volta, para o qual precisei solicitar a que abrisse os vidros. Ele, que estava de máscara (assim como o da ida), retrucou: “Mas está calor e eu estou protegido, de máscara”. Aumentei o tom de voz o suficiente para mostrar imposição de cliente e intimei: “Só que EU não estou protegido e prefiro calor ao risco de contaminação, POR GENTILEZA”. Fui atendido prontamente, ainda bem. Todavia, percebi como é difícil para nosso povo deixar de ser egoísta.
 
 
Voltando ao percurso de ida, eu imaginava encontrar aquelas cenas descritas em obras sobre catástrofe zumbi, algo como “Guerra Mundial Z”, de Max Brooks (aliás, como SEMPRE, o livro é bem melhor que o filme – apesar deste não ser ruim, diga-se). Cidade quase deserta, pouquíssimos humanos nas ruas, a morte a nos espreitar nas casas com venezianas entreabertas… qual nada! O movimento estava quase normal e, não fosse o trânsito rápido e a quantidade de mascarados dirigindo, diria que era um dia como outro qualquer.
 
 
Ao chegar ao mercantil, aí, sim, notei diferença. Logo na chegada, uma pia improvisada para lavar as mãos com água e sabão líquido. E uma pequena fila para fazer o procedimento. Sim, pequena, porque a maioria das pessoas lamentavelmente passava direto, sem dar atenção, mesmo vendo o que se fazia ali. Escolhi um mercantil maior que o do meu bairro também para poder ter mais espaço entre os clientes. E nisso fui bem-sucedido, com a ajuda do próprio estabelecimento, que colocou simpáticos adesivos no chão, nas filas do caixa, com dizeres: “A distância de dois metros nos aproxima da segurança”, ou algo assim, não lembro textualmente. E os clientes ficavam, realmente, a cerca de dois metros um do outro, salvo um ou outro idiota de plantão.
 
 
Pensei em sacar algum dinheiro nos caixas eletrônicos disponíveis. Entretanto, além de estarem com muitas pessoas a esperar, ali pareciam ter esquecido a lição da fila de pagamento. Todos bem próximos, quase o corpo de uma centopeia. Deixei para outra oportunidade e local. A única loja do complexo que estava aberta era a de chocolates – com certeza pela proximidade da Páscoa – , que deixava clara a recomendação de entrar um cliente por vez, para que as duas funcionárias (também mascaradas) e o próprio ficassem em distância segura, dentro da pequena loja.
 
 
 
Voltar a salvo para casa vendo a própria humanidade tentando sobreviver, mas também fazendo coisas erradas, fez sentir-me como a personagem Eva Katchadourian, do thriller “Precisamos falar sobre o Kevin”, da norte-americana Lionel Shriver. Assim como Eva, a mãe do assassino Kevin, eu acabo, inexplicavelmente, me sentindo meio culpado. Culpado por pertencer a essa raça descuidada (eu mesmo, sem máscaras até aquele instante, corri riscos – mas já providenciei, não se preocupem) e às vezes, egoísta. Até tentei fazer algo para diminuir minha culpa. Comprei um pacote de bolachas para dar a algum pedinte dos semáforos, figura típica em nossa cidade. Porém, ao chegar em casa com o pacote na mão, percebi esse sinal de que nem todo mundo está inconsciente do que acontece: não havia nenhum, no caminho. Tomara que estejam se protegendo; e não doentes ou mortos.

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