Hoje fiquei tentando imaginar como meus pais adotivos estariam, se vivos fossem, nessa pandemia. Então, no melhor estilo “De volta para o futuro”, me teletransportei mentalmente para a rua Dr. Ratisbona e apareci no meio da sala, anonimamente.
 
 
Meu pai estaria em frente ao televisor Telefunken preto & branco, caçando, com os “tec-tecs” do seletor de canais, um telejornal para colher as últimas notícias. Depois de passar pelos 4 ou 5 disponíveis, xingaria a programação fútil e iria ligar seu rádio Transglobe Philco de ondas curtas para sintonizar a BBC de Londres ou o programa “The Voice of America”. Atentamente, ouviria tudo, para depois repassar a mamãe de forma traduzida e detalhada as informações ditas em um inglês que ela pouco captava.
 
 
Depois sairia xingando a ditadura, o governo irresponsável, que cobre os números oficiais, e ficaria nos dizendo que até na Europa se tem notícias mais precisas sobre o Brasil do que as divulgadas por nossos meios de comunicação locais. Uma ou outra ofensa sairia em alemão (apesar de húngaro e fugitivo da Segunda Guerra, ele sabia alguma coisa da língua, por conta da vida no lado austríaco do Império Austro-Húngaro), com o objetivo de que não entendêssemos. Se bem que não havia necessidade de esconder nada. Desde cedo eu percebia que expressões faciais e tom de voz é que comunicam, muitas vezes, não necessariamente as palavras em si. Contexto. Eis tudo.
 
 
Depois ele se sentaria à máquina de escrever e ali faria mais algum capítulo de seu livro (infelizmente nunca publicado e cujos originais se perderam, ao longo do tempo), ou simplesmente usaria dela para produzir longos textos a serem lidos em reuniões regadas a charutos e conhaque com amigos, quando voltasse a recebê-los após a quarentena. Hoje meu pai seria provavelmente um cara como eu, usando da criatividade artística como forma de denúncia e preservação da sanidade mental (ele era ainda mais estressado intelectualmente do que eu).
 
 
Minha mãe, por sua formação religiosa da cidade interiorana de Santana do Cariri, provavelmente pegaria seu terço inútil e iria rezar para o “Padim Ciço”, a fim de trazer um milagre para a cura. Minha mãe era uma pessoa do bem, mas bastante submissa, nem tanto a meu pai, porquanto ele não fosse realmente um déspota, mas a sua fé irritantemente resignada. Sem idade para ajoelhar, iria sentar na cadeira de balanço, ligar a TV na chatíssima transmissão da Santa Missa e ficar puxando as orações do terço, murmurando (é a incrível capacidade que as pessoas religiosas têm de reproduzir orações mecanicamente, sem refletir sobre nada do que dizem, enquanto realizam outras atividades, como se isso servisse pra alguma coisa ou agradasse a Deus). A passividade inofensiva de minha mãe me lembra a Conceição, do conto “Missa do Galo”, de Machado de Assis: “temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos”. E isso puxei a ela.
 
 
Minha mãe com muita certeza seria, caso aprendesse a mexer na Internet (o que duvido, porque ela era extremamente tradicional e apavorada com o novo – isso também puxei dela), daquelas que passam infinitas e insuportáveis correntes, mensagens de papa, santos e do pároco local, ainda que este fosse um elitista safado e segregador, como realmente o era, o daquela época. Acataria todas as superstições religiosas divulgadas na rede social para trazer as bênçãos de Deus e iria ingenuamente crer que a cura de tudo está em Deus, e não nas ações humanas. E ai de mim se perguntasse porque Deus curaria uma doença que ele mesmo trouxe. Eu iria levar um sermão sobre Ele só fazer o bem, ainda que eu questionasse a razão, já que é soberano e onipotente. Se o “Diabo” é mais fraco que Deus e faz o mal, por que Deus permitiria? Ela me olharia com ar incrédulo (eu sempre surpreendia minha mãe com meus questionamentos), faria de conta que não ouvira e retornaria seu terço.
 
 
E eu? Bem, eu estaria na mesa da sala, jogando xadrez contra mim mesmo, e War, o jogo de tabuleiro, com os seis exércitos. Com certeza revezando entre uma rodada de um destes e um lance da partida de xadrez, alternando entre pretas e brancas. E quando eu cansasse mentalmente, iria para o quarto ao lado, protagonizar mais uma rodada de meu campeonato de futebol de botão. Jogando pelos dois lados, evidentemente. A infância caseira (meus pais sequer me ensinaram a nadar ou andar de bicicleta, para não me aventurar fora de casa) me trouxe algo que hoje é benefício: lidar muito bem com a solidão e saber me divertir sozinho. Até hoje vou a shows sozinho, cinema sozinho, futebol sozinho. Não que companhias me desagradem ou irritem (quer dizer, só se insistirem em ficar falando sobre outra coisa, enquanto o evento se desenrola), só não dependo de ninguém para aproveitar o lazer. E eis que hoje estou bem resolvido.
 
 
Obrigado, família. Entre coisas positivas e negativas, vocês, passíveis de elogios e críticas como “Os Maias”, de Eça de Queiroz, me deram tudo aquilo que preciso: a racionalidade questionadora e sanguínea de meu pai e a doce passividade inofensiva no trato com as pessoas de minha mãe. Parece um contrassenso? Talvez. Mas é essa química mágica de minha criação de meus pais adotivos que me dá sanidade neste período de pandemia. E mesmo vendo defeitos em ambos, assim como virtudes, algo muito maior, vindo deles, me transformou no homem que sou hoje: o Amor. O amor que fez com que eles me adotassem ainda na barriga de minha mãe biológica, ao terceiro mês de gravidez, sem qualquer perspectiva de quem seria este que vos escreve.

Comentário do facebook