Dia de aprendermos, com este que vos fala, os benefícios e malefícios de um hábito que tenho há muitos e muitos anos: o “sincericídio”. Embora um neologismo de fácil compreensão, é bom que se explique, para os incautos, do que se trata: é o costume de sempre falar aquilo que pensa, sem muito filtro temporal, modal, ou consecutivo. Normalmente deveria ser interpretado de maneira positiva, pois inspira confiabilidade e verdade, ao interlocutor. Mas também pode ser mal visto, pois para alguns denota uma certa falta de tato ou sensibilidade, ou mesmo uma estranha e não rara sensação de arrogância de quem pratica a ação de ser sincero “demais”. Um julgamento bastante injusto, diga-se.
Normalmente os “sincericidas” somos vistos como pessoas chatas e infelizes, por aparentarmos estar constantemente cutucando as feridas alheias. Não é bem assim. Primeiro, porque podemos até ser um pouco amargos, mas não infelizes. Afinal, é uma sensação aliviante poder falar a (nossa) verdade sem ficar se resguardando atrás das mentiras sociais pelas quais as pessoas comuns cobram e são cobradas. Quanto à chatice, ela é real. Porque inúmeras vezes nos tornamos porta-vozes de opiniões desagradáveis que as pessoas não querem ouvir. E estas, em geral, tomam isso como uma crítica particular, o que não deveriam. Então entramos num dilema à la Oscar Wilde: “Pouca sinceridade é uma coisa perigosa, e muita sinceridade é absolutamente fatal”.
Antes de prosseguir, falando no escritor britânico, consigo pensar em algumas referências para vocês, que gostam de minhas dicas: entre 2006 e 2010 houve uma série de comédia brasileira chamada “Super Sincero”, de Fernanda Young (falecida ano passado, infelizmente) e Alexandre Machado, com a marcante atuação de Luiz Fernando Guimarães no papel protagonista de Salgado Franco (nome sugestivo, não?). Na época eu via muito pouco TV, assisti a poucos episódios, todavia, lembro de ter rido bastante, por identificação. Escutem também a música que abre os episódios, “Sincero” de Lulu Santos. Finalmente, vou recomendar um livro que ainda não li (olha aí, a sinceridade a serviço da humildade), mas que me parece bem interessante: “Um homem chamado Ove”, do sueco Fredrik Backman, que relata as histórias de um senhor sincericida e muito chato que acaba sendo “adotado emocionalmente” por um casal de novos vizinhos iranianos e seus filhos. Vale a pena conferir, acho.
O maior problema que as pessoas veem nos que falam sempre com sinceridade é a inconveniência, muitas vezes confundida até com grosseria e desrespeito à opinião alheia. E isso é um desafio: fazer as pessoas perceberem que ter uma opinião diferente, mesmo que contundente, não é algo que seja digno de mágoa. Eu não deixo de gostar de alguém ou de respeitá-la porque ela pensa diferente do que penso. Ter uma ideia alternativa é algo muito normal, para mim. E mesmo a maneira como é colocada não me irrita, desde que não seja ofensivo. E aí é que está: o conceito do que é ser ofensivo. Pessoas não sincericidas se doem se opinamos contra algo ou alguém que amam e/ou defendem, mesmo que o façamos com todo o grau de maturidade e delicadeza. Porque, para elas, NÃO IMPORTA se você fala com jeito, com grosseria, ou de maneira técnica: apenas não querem OUVIR essa opinião, muito menos expor a própria, ou debater.
Assim, passamos como seres insensíveis e desrespeitosos. Não é verdade. Contudo, não posso convencer ninguém do contrário, só me defender. Não raro até tento me restringir a só opinar se me perguntarem a respeito de algo (há que se diga que, muitas vezes, sincericidas são provocados a falar, porque muitos adoram que nós sejamos os porta-vozes daquilo que eles mesmos querem dizer e não têm coragem, para não ferir suscetibilidades de amigos ou criar situações constrangedoras – e, pior, sempre caímos como patos nessa arapuca, pois não resistimos a uma boa verdade). Entretanto, há momentos em que a coisa é mais forte que eu. É uma questão de honra poder me expressar. Talvez seja um trauma da vedação a opiniões da época da ditadura. Porém, via de regra não saímos falando aleatoriamente e tomamos o cuidado de “sondar o terreno”, antes de falar.
Pois bem, a razão deste longo texto de hoje é que eu estou meio cansado de ter de me explicar e me desculpar sobre isso para casos pontuais, então vim fazer uma explicação geral. Só hoje foram duas situações. Primeiro, uma ex-companheira veio se queixar de uma diacrônica minha que questiona a utilidade prática da religião durante essa quarentena, retratada numa ironia ao terço que minha mãe adotiva usava. Sentiu-se ofendida. Logo ela, que SE lê algo meu, NUNCA comenta, não faz UM elogio ou mesmo comentário crítico. Mas como lhe doeu, rapidamente veio se manifestar…
Depois, cometi um erro gigante, de forma inadvertida: uma grande amiga colocou vídeos, num grupo de whatsapp, de homenagens a um oficial de polícia morto pelo Coronavírus. Lamentei verdadeiramente a perda, mas disse que não conseguia entender essas homenagens dramáticas, com tiros etc, a militares que apenas cumpriam sua obrigação. Isso é fruto, provavelmente, de minha má relação com autoridades/autoritarismo. Infelizmente, fiquei numa situação muito constrangedora, pois o rapaz era primo dela, coisa que eu não sabia, ao comentar. E ela, obviamente, se magoou, ainda mais nesse período de extrema sensibilidade em que temos vivido. Já pedi minhas desculpas por áudio (que ela não ouviu, deve estar bastante chateada comigo ainda), e uso deste texto para reforçar o pedido e tentar explicar como os sincericidas agem: sem maldade. Tomara que ela tenha o hábito de me ler.
Isso, lógico, sem falar das inúmeras vezes em que as pessoas se aborrecem por minhas opiniões sobre música, literatura e Arte em geral. Quero deixar bem claro que não possuo intenção alguma de magoar qualquer pessoa ou denegrir ninguém. Não confundam contundência com intransigência. Não pensem que ter uma posição firme e convicta significa desrespeito à posição firme e convicta alheia. A questão é que nós, sincericidas, somos desprendidos dos temores sociais, até certo ponto. O que não quer dizer que sejamos estúpidos e insensíveis. Falar a verdade é uma libertação, para nós. É livrar-se da corrente hipócrita da “etiqueta social”, desde que não seja com ofensas. A grande questão está no curtíssimo limite do que seja ofensivo, quando se comenta sobre algo que afeta pessoalmente ao outro. E, com todo respeito, numa frase final sincericida, digo: então o problema está na hipersensibilidade de quem ouve, não na sinceridade de quem fala.
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