Amo ler, desde a tenra idade. De acordo com meus pais, com três anos eu começava a reconhecer os letreiros das lojas quando andava de ônibus, e repetia o nome que ouvia nas propagandas da televisão. Com quatro, já estava lendo perfeitamente matérias de jornal para uma plateia composta por vizinhos estupefatos e meus genitores orgulhosos. Aos oito, já conseguia entender o inglês e aos onze ou doze, não tenho certeza, li a obra completa de Shakespeare em inglês arcaico, o que fazia os olhos de meu pai saltarem das órbitas, de regozijo. Eu era equivocadamente visto como uma criança superdotada, algo meio como uma “Matilda”, que viria “depois de mim”, em 1988, do escritor galês Roald Dahl. Com a diferença da satisfação e estímulo de meus pais.
 
 
Em todas as datas comemorativas, a partir de meus cinco anos, quando perguntado sobre o presente que queria ganhar, a resposta era a mesma: livros. E lá ia eu megassatisfeito para a Ediouro, uma livraria gigante (para mim, pelo menos era) que ficava ali na rua Major Facundo. Ela era especializada em vender livros para todas as faixas etárias e tinha uma promoção deliciosa: você comprava seis e ganhava o sétimo de graça. Meu pai (principalmente) ou minha mãe me levavam lá e, com toda a paciência, esperavam, tomando cafezinho, enquanto eu ficava por uma ou duas horas naquele delicioso drama da escolha entre tantas atrações. Eram vários minutos lendo as sinopses, até me decidir.
 
 
 
Várias vezes no ano eu chegava em casa correndo, sem me conter, para ler rapidamente as novas aquisições. Engolia os sete livros em dez ou quinze dias. Aí corria para os da estante de meu pai. Lia até quando faltava energia elétrica, forçando a vista, o que me rendeu um “fundo de garrafa” a partir dos seis anos. Só me livrei dos óculos aos quarenta, quando fiz cirurgia de miopia. E já começo a sentir a necessidade de novo. Devo providenciar óculos, nem que sejam de pouco grau, em breve. Se eu ficar sem ler, fico doido, e não estou interessado em ter o mesmo fim de Camilo Castelo Branco, que se matou por angústia de não conseguir mais ler e escrever.
 
 
 
Os clássicos eram meus favoritos, sobretudo aqueles traduzidos por Orígenes Lessa. Li boa parte da obra juvenil mundial e mais toda a filosofia e literatura greco-romana adaptada possível. Além dos gigantes da literatura universal, eu gostava das coleções de aventura, como “A Turma do Posto 4”, que percorria todos os estados do Brasil em busca de solução de crimes e mistérios. Ali minha Geografia literalmente viajava e se expandia. Porém, muito cedo, aos onze anos, para surpresa e deleite de meu pai, algo aconteceu: eu não queria mais adaptações, mas textos originais. Felizmente, a Ediouro também trabalhava com textos adultos. Lembro da expressão atônita do vendedor (um senhor calvo, com cara de escritor, e por isso dono da livraria, para aquela criança cheia de imaginação), quando meu pai informou que a “era das adaptações” tinha acabado. Primeiro a Literatura, depois a Filosofia, começaram a me chegar pelos textos originais.
 
 
Antes que pensem que eu era algum tipo de fenômeno, devo dizer que meus pais também me davam brinquedos e roupas, eu era uma criança (quase) normal. Tudo bem que na maioria das vezes eu criava regras para jogar sozinho, qualquer que fosse o jogo, mas eu também tinha alguns poucos amigos, com quem dividia as atividades infantis. E tem mais: eu penei, no começo, para ler autores no original, sobretudo na Filosofia (lembro que sofri horrores para tentar entender Nietzsche).
 
 
Contudo, ao chegar aos 15 anos, estava craque em todo tipo de leitura, em duas línguas. E foi nessa idade que descobri o quanto o Brasil não gosta de cultura: com a recessão dos anos 80, a Ediouro fechou. Assim como vem acontecendo com várias livrarias atualmente. Foi o primeiro sinal (não percebido, à época) de que eu me apaixonara por algo sem muito retorno no nosso país: arte.
 
 
Estranhamente, a escrita chegou mais tarde. Digo estranhamente, porque é comum uma coisa levar à outra de maneira quase natural. Porém, meu começo na literatura não teve nada de digno. Eu tinha inveja de um amigo do ensino médio na escola que era descolado com as garotas pela arte: cantava, tocava violão, fazia poesia. Como minha voz era (até hoje) um desastre e eu tinha (até hoje, também) habilidade musical zero, comecei a tentar enveredar pela literatura. A quantidade de leituras então jogou a meu favor.
 
 
Não, não consegui “tomar” nenhuma das fãs do meu amigo (lembrem-se, otimistas de plantão, que para a maioria das mulheres as qualidades intelectuais vêm DEPOIS da beleza, não antes). Contudo, rapidamente meus textos cresceram em qualidade. Ganhei uma competição de versos na escola. Depois, por dois anos seguidos, fiquei no “pódio” do concurso de poesias do curso de inglês. Peguei gosto. Não por concursos (raramente participei, na vida, só mais uma vez), mas por escrever.
 
 
 
Hoje, uma das minhas mais sintomáticas recordações de leitura está num diálogo, se não me engano, entre o tcheco Rainer Maria Rilke e um jovem discípulo, no livro “Cartas a um jovem poeta”, em que numa delas o iniciante perguntou ao consagrado artista: “Como sei se sou realmente um escritor, um poeta?” Ao que Rilke respondeu: “Imagine-se numa prisão, sem direito a ler um livro, ou a lápis e papel para escrever. Aí eu te pergunto: Nessa situação, você provavelmente morreria? Se a resposta for sim, você é um escritor”. Pronto. Esse já era eu, aos dezessete anos, para o provável orgulho de meu pai, que morrera quando eu contava quinze. Fui para o curso de Letras. Virei professor de Literatura e Inglês, enquanto escrevia praticamente todos os dias. E cá estou. Não parei mais. O resto é, foi e talvez ainda seja história.

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