Minha diacrônica desta manhã, após um dia tão pesado como o de ontem, para alguns parecerá mórbida e desnecessária. Respeito isso. Todavia, vejo de maneira diferente: interpreto que será um sinal de alerta para muitas pessoas que estejam experimentando situação semelhante àquela pela qual passei muitos anos atrás. Ou que convivam com alguém que apresente sinais semelhantes, a fim de observarem seu comportamento e vigiá-lo carinhosamente. Essa interpretação também responderá àqueles amigos que, com certa razão, dizem que às vezes me exponho em demasia.
Como estas páginas têm servido como um misto de Arte e Psicologia, nada melhor que abordar um tema pesado para pôr à prova sua eficácia. E assim, espero ter um resultado diametralmente oposto àquele obtido de forma involuntária por Goethe, o romântico alemão que viu sua obra “Os sofrimentos do jovem Werther” causar, ao que tudo indica, uma enorme quantidade de suicídios na Europa, após sua publicação, devido à identificação dos leitores com o protagonista, autor desse ato covarde, por não superar um relacionamento não concretizado. Essa onda de gente a tirar a própria vida por amores frustrados foi chamada, à época, “efeito Werther”.
Pois bem, curiosamente, no dia 14 de abril, o mesmo de ontem, eu tive minhas duas únicas tentativas de suicídio (seria uma espécie de data infernal em minha vida e por isso eu estava tão abatido? – Não sei). Uma foi cômica, outra, quase mortalmente trágica. Na primeira, aos 16 anos, por conta de uma também jovem, mas belíssima e rica garota ter me dito com todas as letras que não iria mais namorar-me pois eu era um “cara legal, mas feio e pobre”, resolvi atirar-me na frente de algum ônibus que descesse a rua Solon Pinheiro em alta velocidade, bem na esquina da Praça Coração de Jesus. Naquela época, as linhas de coletivos tinham duas possibilidades de dobrar a tal esquina: à direita, para quem ia estacionar na lateral da praça e à esquerda, para quem rumaria ao Centro da Cidade.
Bem, estando eu justamente na dita esquina, ao atirar-me na entrada da direita sem tempo de arrependimentos ou freio, estatelei-me no chão e esperei o impacto. Abrindo os olhos, em vez de encontrar o inferno ou o paraíso, observei dezenas de olhos curiosos me cercando, em círculo. Obviamente, o ônibus tomou o outro rumo. Embora me oferecessem a mão para me levantar, ergui-me sozinho, irritado, batendo a poeira do asfalto do corpo e resmungando que nem para morrer eu prestava. Coisas de adolescente. Uma impetuosidade ridícula que só não atingiu seu objetivo final exatamente pela própria intempestividade em sequer olhar para o nome da linha do veículo. Porém, uma lição ficou: garotas ricas, nunca mais. Tempos depois, conheci a peça “Suicídio patrocinado”, de Pedro Fabrini, e vi que há gente bem mais incompetente na estúpida missão de se matar. Confiram, se puderem. Dá boas risadas.
Na outra situação, com quase 30 anos e tendo constatado que o segundo casamento estava se desfazendo e que eu fora o culpado, por insistir numa relação que tinha tudo para dar errado, não tendo forças para convencer a parceira disso, resolvi dar cabo à minha vida novamente, desta feita com um planejamento mais bem arquitetado e, por isso mesmo, mais perigoso. Mandei entregar cartas de despedida numa escola onde trabalhava, todas num único envelope, endereçado a um amigo professor que, eu sabia, não tinha aula naquele dia. Assim, só dariam pela minha ausência funesta no dia seguinte.
Eu me sentia um fracasso moral, mais ou menos como alguma das irmãs de “As virgens suicidas”, do norte-americano Jeffrey Eugenides. Minha formação ético-cristã me fazia me sentir um irresponsável, um ser sem dignidade, que deixava as esposas sem piedade. Só depois concluí que todo fim de relação vem de falhas dos dois lados. E que o peso é compartilhado. O detalhe é que a dor do abandono está mais para quem fica. E a da culpa para quem parte, se tiver o mínimo de caráter, lógico.
Voltando a meu planejamento de morte, o que eu não contava, em meus ardilosos cálculos, era que a supervisora fazia aniversário nesse dito dia 14 de abril e que meu companheiro de profissão, reconhecido orador, tivesse sido convocado para fazer uma homenagem à hora do intervalo. Interpelado na recepção, ele recebeu o envelope e, após as saudações à aniversariante, constatando o conteúdo macabro, disparou em direção ao apartamento onde eu morava, no terceiro andar. Porta trancada, ele chama o síndico e, munidos de escada, adentram pela janela que deixei aberta, sem imaginar que um resgate desse tipo seria feito. Ali mesmo recebi massagem cardíaca, enquanto a ambulância não chegava para fazer uma lavagem dos comprimidos e álcool que ingerira.
Você pode estar se perguntando a razão de eu estar falando disso hoje, numa época em que tanta gente está a se deprimir com essa quarentena… Exatamente porque eu quero dizer às pessoas que pensam nessa tolice que não vale a pena o desespero. Hoje sou totalmente feliz por ter sido um fracasso em tirar minha vida, tanto quanto fui no amor. Após a segunda e por pouco bem-sucedida tentativa, prometi a minha mãe biológica, ambos entre lágrimas, que não faria mais isso. Outro casamento desfeito veio, algumas tentativas frustradas de namoro e uma quase certeza de que o fim dos dias será solitário. Entretanto, adveio uma vontade de viver fenomenal! Tirar a própria vida por uma angústia gigante de hoje inviabiliza a única maneira de ser feliz amanhã!
Não importa mais se como um Romeu shakespeariano patético ou como uma descontrolada e estilosa Ismália simbolista, não quero deixar a vida. Não tenho nenhum temor à morte, de fato, mas não tenho pressa alguma em encontrá-la. Por quê? Porque aprendi que o grande fracasso do amor é deixar de amar a nós mesmos. E, com toda a pobreza, erros, falhas e radicalismos que me são peculiares, eu gosto de mim como sou. É estranho escrever isso. Talvez seja também lê-lo. Mas eu amo minha imperfeição. Para mim, ela é perfeita. Se nenhuma pessoa me ama como sou, assim, cheio de falhas, vivam Sartre e os Titãs: o inferno são os outros. Estes que vão para lá. Eu só vou quando minha hora chegar.
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