Ontem eu terminei minha diacrônica falando sobre imperfeição. Vários artistas buscaram-na à exaustão. Leonardo da Vinci, por exemplo, condenava o pintor que não se obcecasse por ela, por considerar que uma pintura uma vez finalizada já estava eternizada, para o bem, ou para o mal. Para ele, diferentemente de uma composição musical, que a cada execução pode ser aprimorada, por técnica ou emoção, uma tela, depois de pronta, não tem como ser alterada, o que exige de seu criador um árduo trabalho de detalhamento. É bem verdade que ele não deixa de ter razão, mas vejamos com calma: há quem diga hoje que a Monalisa não é digna da reverência que recebe. E aí? O que vale é a eternidade de uma obra bem feita? Ou os padrões que mudam com o passar do tempo? Eu tenho minha resposta; você, a sua.

No que concerne à literatura, gosto de ver alguns exemplos extremos. O mineiro Otto Lara Resende reescrevia tanto sua obra, mas tanto, que mesmo depois de impressa, fez alterações. Ler os originais desse grande contista, então, é um desafio, tamanha a quantidade de modificações feitas. De nomes de personagens a frases inteiras. Sempre em busca da fluidez do texto. Já o argentino Jorge Luis Borges revisava pouco, não tinha tanta paciência. Dizia que publicava livros para se libertar deles.

Porém, o caso mais emblemático, para mim, é o de outro mineiro: Murilo Rubião. Autor de pouca coisa além de 32 contos, levou a vida a revisá-los. Sempre e de tal forma, que chegava a considerar o processo uma briga, uma batalha braçal contra a imperfeição das palavras. E quem já leu Rubião deve ter chegado à conclusão de que ele conseguiu, de fato, lograr êxito.

Entretanto, não é bem desta imperfeição artística que pretendo falar. É porque não consigo passar uma diacrônica sem “puxar brasa para minha sardinha”, como se diz (aliás, acho que amanhã falarei sobre ditados populares “modernizados”). A imperfeição a que me propus debater hoje é a nossa, enquanto humanos que temos valores, princípios e verdades que nem sempre conseguimos manter. Eu não sei como vocês lidam com isso. Eu tinha dificuldade. Quando questionado sobre algo que sempre defendia, mas era flagrado em contradição, eu ficava publicamente desconcertado, intimamente revoltado contra mim mesmo.

Com o amadurecimento, percebi que nem eu, nem tampouco minhas ideias são infalíveis. E o que buscamos é sempre melhorar, evitando passos para trás, embora muitas vezes seja difícil aceitar que somos seres que às vezes incorremos na tentação da queda. E qual Sísifo, lá estamos nós a rolar morro acima a pedra da busca pela perfeição. Senti isso hoje, quando fui responder a um simples joguinho bobo de redes sociais: “a corrente do ódio”, no qual, de forma explícita, ironizando as insuportáveis correntes “do bem”, deveríamos manifestar nosso ódio por elementos variados, como cores, frutas, comidas e… pessoas.

Depois de ter respondido, involuntariamente soltei um “esses poderiam morrer, não fariam falta”, ao colocar os dois nomes vitimados por minha ira, para, logo em seguida, flagrar-me pensando que eu critico o ódio que tanta gente devota a outras pessoas por sua classe, sua cor, sexualidade, credo etc. Quem era eu, então, para desejar a morte de alguém, mesmo que esse alguém seja realmente odioso e praticante desse mesmo ódio?

A princípio, vali-me de Karl Popper, filósofo austríaco que preconizava que podemos nos reservar ao direito de não sermos tolerantes com intolerantes. Esse seu paradoxo me parece satisfatório, de fato. Ainda assim, meu lado perfeccionista buscava uma melhor explicação para meu ódio incontrolável, sem que pudesse ser criticado pelo próprio paradoxismo. E foi então que descobri que não tenho de me preocupar com isso, porque não sou obrigado a ser perfeito. O fato de saber o que é correto não me obriga a fazê-lo sempre, ou a me sentir tão mal por não conseguir cumprir o que prego.

Se Jesus, o maior homem santo, exemplo máxime da paz que aqui andou, teve um acesso de fúria e expulsou os vendilhões do templo embaixo de porradas, porque eu tenho de ser a tábua de salvação da humanidade? Optei, então, por deixar meu ódio ao canalha que se diz presidente e a um lacaio seu, deputado aqui da minha terra, quietinho ali, sem neuras. Não desejar-lhes a morte já está cristão o suficiente. Afinal, Flaubert já dizia que se não temos a palavra exata para definir um sentimento, que se use a adequada para aquele instante. E, neste momento, o ódio está de bom tamanho.

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