Vou começar esta diacrônica da maneira que Brás Cubas termina suas memórias: com negativas. Não tenho para quem olhar, não tenho com quem dividir a cama, as contas, a mesa, a louça. Verdade é que, ao lado destas solidões, cabe-me a boa fortuna de não precisar conviver com gente tão chata quanto eu. Mais; não padeço uma possível morte de minha individualidade, nem a demência de fanáticos pelo presidente. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não há míngua nem sobra, e, conseguintemente, que estou quite com a pandemia. E imaginará mal; porque ao chegar a este trigésimo segundo dia de quarentena, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste parágrafo inicial de negativas: – Não tenho discussões, não ouço a voz lamentosa de qualquer criatura a se queixar de nossa miséria.
 
 
Esse torpe e mal traçado exercício de intertextualidade teve por objetivo introduzir meu assunto de hoje: imaginar a quantas andam as relações de quem não tem o privilégio, como eu, de não precisar debater com ninguém as pequenas agruras do dia a dia, a convivência extenuante e modorrenta que o trabalho e outras atividades fora das quatro paredes aliviam. É bem verdade que tal convivência também pode trazer benefícios e não me furtarei a analisá-los. Porém, pensando bem, o parágrafo inicial a que me referi já cumpriu bem outro papel: evitar que a diacrônica de hoje ficasse por demais diminuta.
 
 
 
Para algumas famílias, a rotina diária de estarem todos juntos pode ter sido positiva: são pais que passam a brincar, interagir e demonstrar mais amor por seus filhos; casais estremecidos que ora, diante da dificuldade, vão se entendendo, se respeitando, e vendo que diante do que enfrentam juntos, podem se solidificar e repensar o futuro da relação; irmãos antes rivalizados que se unem na proteção e carinho aos pais; clãs inteiros aprendendo, na adversidade, o verdadeiro sentido da tolerância que leva à união. Para esses casos e pessoas, faço loas e aplaudo com as mãos banhadas em álcool em gel.
 
 
 
Entretanto, imagino como não devam passar extremo desconforto aqueles que estão forçados a conviver com um companheiro ou uma companheira de quem a separação era dada como certa, até pouco tempo antes da reclusão forçada. A infelicidade que reside nas casas (porque aí não convém chamar de lares) onde as desavenças se multiplicaram com a superpopulação em todos os horários: a briga pelo banheiro, pelo lugar à mesa, pela porção de sobremesa ou pelo controle remoto, esse objeto, já antes, causador de conflitos e consumismo. Sem falar nos filhos que entram nesse clima e vivem uma situação de inconformismo e desespero existencial, como se fora “A casa de Bernarda Alma”, de Federico Garcia Lorca, elevada à enésima potência. Aliás, a primogênita de Bernarda nessa peça se chama: Angústia. Apropriado, para a situação.
 
 
Fico tentando me colocar na cabeça de maridos e esposas infiéis que já não aguentam mais ficar sem ver seus amantes, e cuja “relação” está em perigo pela excessiva ausência. E não há crueldade, nesse caso: é falta de motivo justificado ou mesmo desculpa para sair de casa. E então? Como conviver com aquele(a) estrupício com quem está casado(a), não tendo mais a possibilidade de manter as aparências sem aquele “desafogo” semanal?
 
 
 
Tento imaginar a situação de pais idosos que assistem a seus filhos disputando quem vai fazer a comida, quem vai dar o banho, quem trocará as mudas de cama deles, como se fosse um peso cuidar daqueles que sempre cuidaram de nós. Que tristeza no entreolhar! Que cumplicidade na transmissão de pensamentos (“Onde erramos?”) enquanto seguram com carinho as mãos enrugadas um do outro. Sorte daqueles que contam com pelo menos um desses rebentos ingratos para ignorar a divisão justa do trabalho e tomar para si a necessidade premente.
 
 
 
Porém, querido leitor, não pense que a vida dos que moram sozinhos, apesar dos benefícios da silenciosa paz, é tão simples, assim. Além da solidão, enfrentamos a dor de não ver os filhos (meu caso) ou outros entes queridos. E há aqueles que não têm ninguém e simplesmente não têm a sorte de lidar bem com sua própria e natural ranzinzice, como eu lido. Nem todo mundo consegue administrar bem essa situação e meus conhecidos que passam agruras emocionais por não suportarem mais o isolamento são os que mais me preocupam. Não à toa, tento falar com eles vez por outra, no limite entre a preocupação carinhosa e a intromissão invasiva.
 
 
 
De toda forma, entre lucros e perdas, entre serenidade e tristeza, estamos todos envoltos por um vírus que, com certeza, já produziu um efeito inigualável na sociedade: a revisão de conceitos sobre como nos relacionarmos; a aceitação do que nos une: dos laços, das amarras, dos nós. Os nós das relações e os de “nós” mesmos.

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