Terceiro dia de boa chuva, algumas vezes com direito a bônus de raios e trovões. Nessas ocasiões, é como se Ororo, Raio Negro e Thor fizessem reunião de condomínio. Uma delícia. É inegável que uma boa tempestade, para quem gosta, é motivo de satisfação plena. Trata-se de um espetáculo da natureza que, além de, evidentemente, trazer alívio para o malfadado calor por já criticado nestas mesmas diacrônicas, modifica meu ser.
A chuva vai muito além do refrescar climático. É algo que me refrigera a alma, acalentando-a e deixando-a mais suave e sorridente. Eu, sempre tão cheio e arroubos e agonias, sinto que quanto maior for o temporal, quanto mais ruidoso e luminoso, mais paz me traz. É uma sensação semelhante à que causa em Fabiano, da genial obra “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. Para o acabrunhado sertanejo, no capítulo nomeado Inverno, a chuva traz efeitos muito maiores que aqueles sentimentos de alegria vividos por um agricultor comum. Assim também sou eu. Não é só pelo calor. É pela tranquilidade para a existência.
Assistir a tudo isso de dentro do conforto de meu lar e ainda poder optar por uma ida à entrada da casa para um banho é um privilégio que a quarentena me deu, tendo em vista que diferentemente de outras vezes, neste ano as chuvas não estão vindo somente à noite ou cedo pela manhã. Vêm durante o dia todo, até no horário mais raro e imprescindível, entre meio dia e três da tarde, o intervalo insuportavelmente quente nesta região.
Porém, nem tudo é festa. Queria eu poder sentir todo esse prazer e felicidade sem culpa, mas não consigo ficar cem por cento descansado, porque me lembro dos desabrigados, dos sem-teto, expostos a tamanha precipitação sem abrigo. E quantos não estarão agora em locais sem proteção de um para-raios, apavorados? Sem falar nos animaizinhos abandonados, sem lar, que não entendem o que se passa e buscam abrigo embaixo de qualquer coisa. Então, passo a conviver com algo terrível: o remorso por estar feliz. Porque quando ficamos contentíssimos enquanto outros podem estar muito mal devido ao motivo de nossa felicidade, gera-se um anticlímax amargurante.
Nada é perfeito. É muito estranho ter de ficar entre o desejo de “quero muito mais” e “tomara que passe logo e ninguém se machuque”. É um conflito entre nossa alegria e egoísmo; entre alívio e tensão. Nosso Dr. Jekyll e Mr. Hyde pessoal. A chuva é o médico de minha cura espiritual, mas revela o monstro individualista que coabita este corpo. Gostaria, às vezes, só às vezes, de ser bem mesquinho. Deixar Mr. Hyde tomar de conta. E consigo. Por meia hora. Penso, no íntimo, durante esse período de tempo, naquela musiquinha que meu pai cantava, enquanto caía uma tempestade dessas: “Tomara/ que chova/três dias sem parar…” Não mais que isso, não mais que trinta minutos. A lembrança dos desvalidos me tortura a alma, numa autoflagelação abominável. E o prazer se vai, pedindo para que a chuva também se vá.
É chato ser consciente. Mas é necessário. Se todos pensassem dessa forma sobre esse vírus… Por exemplo, que é angustiante deixar de trabalhar, de ir ao estádio, aos shows, à casa dos namorados, amigos, vizinhos e parentes, mas que é realmente importante, pelo bem de todos, para que isso tudo acabe mais rápido, talvez já tivéssemos passado pelo pior. Infelizmente, é característica inata não apenas ao brasileiro, como muitos dizem, mas ao próprio ser humano, ser mais selvagem que civilizado, mais egocêntrico que coletivo, mais Hyde que Jekyll…
Enquanto escrevo, vai tocando “Chove, Chuva”, clássico do genial Jorge Ben(jor), na versão da banda Biquini Cavadão, música que eu tinha deixado em “repeat”, durante a produção do material de hoje, que vocês ora leem. E como se num sinal da própria natureza, a chuva contínua que caía aqui vai parando. Paro a música. Paro esta diacrônica. E que todos lá fora estejam bem, na medida do possível.
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