O acúmulo de tempo em casa começa a fazer vítimas. Lâmpadas piscando, querendo queimar, no melhor estilo dos filmes de terror (eba!). E já comentei anteriormente sobre a da cozinha, ligada 24 horas, pois o interruptor não funciona mais. Um ventilador pifou, outro quebrou o seletor e só posso ligá-lo ou desligá-lo diretamente na tomada. O terceiro, o maior, felizmente, resiste. Aceitamos doações, risos.
Minha conta de energia duplicou, de forma inversamente proporcional à minha vontade de trabalhar. Os livros, limpos há um mês, continuam no mesmo lugar, desorganizados nas prateleiras. Tempo maior, preguiça infinita. Um Huckleberry Finn de meu lar, eis o que sou. Aliás, a Síndrome de instabilidade profissional, batizada com o nome desse personagem de Mark Twain, ainda será tema nestas diacrônicas, algum dia.
A mesa cheia de trabalho por fazer, provas de antes da quarentena ainda por corrigir, remédios misturados (embora separados, protegidos, numa caixa) com cinzeiros, livros, DVDs, CDs. No canto da mesa, imponente, uma garrafa de álcool em gel que, felizmente, quase não uso, pois ninguém entra – a não ser o entregador de água (uma vez a cada dez dias) e a faxineira (uma a cada quinze dias), devidamente protegidos e com todas as precauções – e eu não saio (apenas três vezes, para idas a mercantil).
O guarda-roupa repleto de camisas que não uso, mas a bolsa com os itens sujos, por lavar, essa está lotada de toalhas e bermudas de ficar em casa. Falta coragem para conferir quantas peças de roupa já perdi, pelo sobrepeso ampliado. O perfume está intacto, praticamente, só o desodorante tem tido uso. Assim como as lâminas de barbear, que têm servido para retocar a barba grisalha recém-criada. Queria que igualmente pudessem ser utilizadas para raspar os também grisalhos, mas esparsos e rebeldes cabelos, mas não me atrevo. Saudades de “passar o um” na barbearia do seu Adailton.
O celular está sempre recarregando, pois tenho me dedicado a falar com alguns amigos e conhecidos, tentando confortá-los. É por meio dele que me comunico com a família, especialmente com os filhos. Nessa hora fico imaginando como sobreviveram os que passaram por outras épocas de necessidade de isolamento sem essas ferramentas tecnológicas. Provavelmente, o primeiro período em minha vida em que as abençoei mais que praguejei contra.
A televisão é quem me lembra do som da conversação humana ao vivo, muitas vezes ao dia. Debates de esporte e até Big Brother, encerrado hoje, foram companheiros. Antes que perguntem porque me “submeti” ao BBB, tenho a estranha obsessão de só ver os filmes e séries que compro, presentes na minha coleção de DVDs. Exceção feita à The Walking Dead, a única série que acompanho regularmente, parada logo na segunda semana de confinamento, no penúltimo episódio, também por conta da pandemia.
Só a cozinha está sempre em uso e constante limpeza, além do banheiro, claro. O grill, a cafeteira, o air fryer, o freezer e o isopor para o gelo de minha bebida viraram melhores amigos (da onça, vide o peso citado anteriormente). À parte a cozinha, estão sendo frequentemente utilizadas as duas inteligências que tenho e ainda funcionam bem: a artificial (o computador) e o meu cérebro – o que, a esta altura do campeonato, é uma bênção indiscutível.
Há momentos de profunda tristeza. Contudo, sempre que ela vem, invadindo minha alma com veemência e violência, eu me recordo o quanto ainda sou privilegiado por correr riscos mínimos e ter tanta arte ao meu redor para me distrair. E nessas horas, uma alegria sincera me assola. Ser um cara esquisito e solitário ajuda muito nesse confinamento. Aprecio o que sou, gosto de ler, ver, ouvir minhas “esquisitices” que me causam imenso prazer e não incomodo ninguém. Egoisticamente, até celebro não precisar disputar controles ou pedir silêncio a ninguém. Morar só há onze anos acabou sendo bom para mim, em suma, por incrível que pareça. Deu um “know-how” de resistência, resiliência e amor próprio indisfarçáveis.
Tremei, Richard Matheson! Robert Neville, que nada! EU sou a lenda.
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