Já me compararam, na carreira do magistério, a Otto Lidenbrock, o destemido e sapientíssimo professor de “Viagem ao Centro da Terra” do francês Júlio Verne, por desbravar as profundezas da alma estudantil, em busca de encontrar ali o gosto pelo conhecimento. Uma honraria que não mereço. Até porque não tenho o brilhante talento científico desse mestre. Estou mais para um professor Josué, do brasileiríssimo “Gabriela, cravo e canela”, de Jorge Amado: aquele professor metido a poeta, simples, com muita vontade de ensinar qualquer coisa, apesar dos parcos recursos.
 
No meu caso, os recursos mais parcos estão na questão tecnológica, mas faz poucos dias que falei sobre isso; portanto, não vou ficar me lamuriando a vida inteira, ou viro pastiche de Simão e Teresa, em “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco. Hoje vou dar uma de Mariana e ser o mensageiro fiel dessa relação nada amorosa entre o professor e sua nova missão digital.
 
Meu primeiro dia foi na segunda-feira, 04 de maio. Aniversário de minha mãe adotiva, se viva fosse. Tomei isso como um sinal. Ela, uma professora de escola pública no interior, em Santana do Cariri, à custa de muita boa vontade e poucos meios, chegou a ser diretora de escola pública. Pedi inspiração a ela para sair de casa e enfrentar dois desafios: a exposição ao Coronavírus e à tecnologia, sem saber qual dos dois em deixaria mais enfraquecido e inerte. E parti, aí, sim, destemido como um Lidenbrock, ao centro de minha terra perigosamente desconhecida e assustadora.
 
 
Também me deu ânimo lembrar que vim de uma família de professores: uma das irmãs dessa minha mãe era igualmente professora, minha tia Nira, e uma das filhas dela, Laurenir, minha prima mais querida e com decisiva influência na decisão final da carreira, entrava no curso de Letras, enquanto eu ia para o Ensino Médio. Outra, mais velha, e um dos filhos homens já pertenciam à docência. Meu pai adotivo era professor particular de inglês e ministrava aulas num quadro-negro de talvez 80 centímetros por um metro. Havia relatos de que minhas primeiras lições de inglês eu tivera no berço, me segurando à amurada para ver meu pai ao quadro, dando aulas para empresários, advogados, médicos… Até minha mãe biológica, que eu só viria a conhecer 20 anos depois de meu nascimento, antes merendeira em Quixeré, sem qualquer estudo universitário ou formação pedagógica, fora galgada à condição de professora por ser uma das poucas alfabetizadas, em meados dos anos 70.
 
 
Tudo o que se leu no último parágrafo passou-se num átimo, enquanto eu fumava o derradeiro cigarro na calçada, antes de adentrar à escola. O cenário era estranho. Pouquíssima gente, por óbvia precaução e, assim como eu, de máscara ao rosto e álcool em gel em punho. Um cenário de filmes de perigo biológico iminente. Senti-me um protagonista do bom “Epidemia”, um clássico do gênero e com elenco de peso: Dustin Hoffman, Rene Russo, Morgan Freeman e Kevin Spacey. Quisera eu ser um mero coadjuvante, todavia, não era possível retroceder.
 
Os minutos anteriores à primeira a aparição em vídeo foram tensos. Só então percebi que havia compreendido errado sobre a transmissão das aulas. Eu entendera que poderia ter minha aula conduzida ao vivo, como num miniestúdio de TV, e ser transmitida pela plataforma, tudo auxiliado por alguém do suporte técnico. Ou seja, eu só precisaria me preocupar em dar a minha aula normalmente, com mais atenção a meu posicionamento em relação ao quadro. Além, claro, de interagir ao vivo, liberando os microfones dos alunos ou observando o chat. Seria, assim, para minha saúde mental, relativamente tranquilo. Não: gravação, só para aulas a serem transmitidas posteriormente.
 
 
Um pânico me subiu. Ao falar sobre minha interpretação equivocada, apontaram para uma sala com um notebook e nada mais. “É ali”. O que se sucedeu em mim a seguir só pode ser comparado à cena em que o padre Karras vê Regan MacNeill ser possuída pelo demônio pela primeira vez. Como assim? Como vou lidar com isso sozinho? Sem ajuda? Não haveria um padre Merrin para me ajudar a exorcizar aquela entidade tenebrosa, possuída por dezenas de teclas, comandos e mudanças de janelas, portas, escadas. Senti o arrepio da morte percorrer minha espinha dorsal, àquela altura, derreada com o peso dos ombros derrotados.
 
Sentei-me diante do inimigo. A câmera do aparelho brilhava, como se seu monóculo cintilante me impusesse o desafio: “decifra-me, ou devoro-te”. Lembrei-me de que não me dou bem usando apenas os dedos para efetuar os comandos. Em um último apelo à caridade dos que me jogavam às feras, pedi: “P-pr-preciso de um… um… mouse, por favor”. A encomenda chegou, nem um olhar de piedade cruzou o meu e a porta se fechou atrás de mim.
 
Respirei fundo e…
 
(To be continued)

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