Aqueles que acompanham meu trabalho há mais tempo sabem que sou bem pessimista, quanto à humanidade. Não à toa, meus manuais de cabeceira são os “Silogismos da amargura”, de Cioran. e “O mundo como vontade e representação”, de Schopenhauer; minha bíblia, então, é “Memórias póstumas de Brás Cubas”, do nosso evangelista do cinismo humano, Machado de Assis.
 
Porém, vez por outra, enternecido por uma data, um acontecimento, ou gestos isolados de seres raros em uma tragédia colossal, como esta pandemia, eu tenho crises de esperança vã em relação à nossa espécie tão estupidamente arrogante e prepotente. Sim, ainda existe muita gente boa, por aí. Mas a quantidade de seres muito, muito maus é bem maior, creiam-me.
 
Não descarto aqueles que sejam malvados por instinto, como apregoavam os escritores naturalistas. Muita gente rouba, mata ou estupra por serem pessoas doentias, outras por necessidade (especificamente no caso do roubo). Há quem, exposto a uma situação extrema, faz algo de ruim, como sobrevivência, defesa ou mesmo autoafirmação. Entretanto, atribuo a uma absurda consciência de uma superioridade falsa a prevalência de criaturas muito más, mesquinhas e cínicas.
 
São pessoas que se alimentam da humilhação, desgraça e miséria alheia, para depois arrotarem bom-mocismo, caridade e uma irritante e hipócrita religiosidade. São seres repugnantes, que se julgam superiores em qualquer aspecto e maculam o nome sagrado de Deus, invocando-o com os lábios, enquanto arquitetam a próxima artimanha diabólica para escarnecer sobre um empregado, um rival, um desafeto ou qualquer outra pessoa que lhe convenha, pelo simples prazer de sobrepujar.
 
Imaginei eu, várias vezes, nesta pandemia, e inclusive nestas diacrônicas, que a humanidade daria um salto qualitativo diante da gigantesca crise que nos cerca. Supunha que a dificuldade uniria os homens e mulheres de todo tipo e que poderíamos sair mais evoluídos, enquanto raça humana. Ledo engano, o meu. A cada dois ou três gestos nobres e esforços grandiosos em prol do bem, como os da categoria dos trabalhadores da Saúde, para ficar só apenas no exemplo mais visível, dez ou doze canalhas aparecem para me desiludir e mostrar o que realmente a humanidade é: podre e sem jeito.
 
Talvez essa gigante introdução, escrita como um vômito, dê a mínima dimensão do asco que sinto por “indivíduos” como a senhora que, em conversa virtual num grupo de pais de estudantes de uma determinada instituição de ensino, afirmou ter reclamado da escola, que reuniu em um mesmo ambiente virtual alunos de sedes diferentes: os da elite (onde ela julga se encontrar) e os mais “periféricos”, de uma sede localizada em um bairro mais central da cidade. Moradora da Beira-Mar, esta “mãe” ousou, um dia após o sagrado dia delas, profanar tal sacralidade, reclamando da possibilidade de sua filha se relacionar com algum jovem pertencente a outra “classe”.
 
Outra mãe, esta de verdade, na inocência pura do Roderic diacrônico, comenta que o senso de humor da herege era bom, em momento tão difícil. Provavelmente estava na expectativa de que realmente não passasse de uma declaração jocosa. Ao constatar, pela reafirmação da imbecil interlocutora, que sua esperança fora em vão, ela tenta argumentar, mas cedo desiste, porque o nível de arrogância daquele aborto nascido equivocadamente apenas aumentava.
 
 
E quem trabalha em educação, como eu, sabe que, infelizmente, gente (se é que posso usar tal palavra para essa aberração) dessa “estirpe” não é uma exceção. Ao contrário, é regra. Só muda o tipo de preconceito: condição social, raça, credo, sexualidade. Às vezes os filhos escapam a essa influência pútrida; na maioria delas, infelizmente, não. E quando nós, professores, só vemos os filhos e lutamos contra suas características atrozes, tentando arrastá-los por influência para um bom caminho, sem entendermos a razão daquela criança ou jovem ser daquele jeito, eis que na primeira reunião de pais a gente descobre. 90% das vezes é assim.
 
E a escola à qual se refere essa mãe desnaturada, então, resolve se posicionar, mas de maneira muito vaga. Faltou ter a coragem de tomar as decisões cabíveis: lançar uma nota de REPÚDIO, em vez de uma de esclarecimento; CONDENAR o ato, em vez de lamentar; oferecer-se, enquanto instituição, para que os pais da outra sede se organizem com um processo por injúria e danos morais contra essa senhora. Isso, sim, seria digno. Porém, quem não é ingênuo entende bem a razão dessa nota de esclarecimento “vasilínica”. A escola não quer se comprometer, porque SABE que esse é o padrão de clientela que tem, e não exceção. Não quer desagradá-los, perder alunos; nem deixar “passar em branco” a grita popular, tamanha dimensão da repercussão. Ora, mas também… o que esperar de uma instituição que tem seus professores sob um jugo quase escravocrata?
 
Podem dizer que sou excessivamente exigente, mas esse tipo de criatura asquerosa, sozinha, destrói a imagem positiva que centenas de profissionais da saúde deixam sobre a espécie humana. Porque, mesmo sendo heróis, essa é a missão deles, compromisso jurado em nome de Hipócrates. E essa senhora mancha a missão a sagrada missão maternal, sob juras hipócritas de amor a Deus e ao próximo, quando vai se prostrar diante daquele, com toda a certeza de que é uma pessoa boa e uma mãe cuidadosa. Ela desintegra tudo o que a gente planejou elogiar. Fez o desfavor de nos lembrar quem somos em nosso estado natural: sepulcros caiados. Não adianta. Certos estão Cioran, Schopenhauer, Machado.

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