Meu pai adotivo, muitos sabem, era estrangeiro. Daí meu nome – e sobrenome, principalmente – “complicado”. Austro-húngaro de nascimento, residente na Áustria, mas cidadão do mundo, o poliglota Emmerich Szasz veio para o Brasil fugindo de Hitler e sua invasão à própria terra natal. Chegou aqui sem saber falar o português, mas aos poucos foi aprendendo.
Porém, mesmo depois de quase 40 anos de brasilidade – chegou, orgulhosamente, a se naturalizar -, ele ainda tinha dificuldade com alguns termos e expressões, ou encontrava formas criativas de lidar com a língua de seu segundo lar. Hoje resolvi resgatar alguns episódios de sua curiosa relação com nossa língua.
1 – SORVETE DE… – A primeira lembrança que tenho nesse campo remonta aos meus 4 ou 5 anos Papai me levava, após a missa dos domingos, à Sorveteria Tropical (hoje “50 sabores”) na avenida 13 de Maio, no Bairro de Fátima, em Fortaleza. Morávamos a um quarteirão de lá. Eu sempre pedia sorvetes que criança gosta: chocolate, leite condensado ou de frutas como seriguela, limão e tangerina. Papai, coitado, sempre causava risos aos atendentes, quando, prejudicado pela dificuldade de observar acentos (a maioria das línguas europeias não os possui), pedia “sorvete de cocô”, em vez de “côco” (sim, na época era acentuado).
2 – PÉ-PETECA – Papai era criativo demais. E fã de futebol. Mas daquele bem jogado. Quando um time jogava mal, só rifando a bola, dando chutões, como querendo se livrar dela, ele usava a origem da palavra “futebol” (“Foot” – pé ) / “ball” – bola), que ficaria em tradução literal “pé-bola”, para xingar as equipes, dizendo que estavam jogando “pé-peteca”. Vi vários times sofrerem esse “xingamento”, especialmente a seleção italiana, quando passou a usar mais um jogador na defesa (o líbero) e venceu a ótima seleção brasileira de 1982.
3 – CAGECE – A Companhia de Água e Esgotos do Ceará (CAGECE) é até hoje a responsável pela distribuição e cobrança dos serviços de distribuição e saneamento das águas cearenses. Quando a empresa apresentava alguma falha ou cobrança exorbitante, papai mudava propositalmente o fonema “gé” para “gue”, gerando o trocadilho “cague-se”.
4 – PATRIOTISMO X EUROCENTRISMO – Meu pai tinha um imenso amor pelo Brasil. Lembro que eu, pequeno, estranhava ele vibrar muito mais no Hino Nacional Brasileiro quando nossa seleção jogava do que no austríaco, quando havia uma vitória do grande Niki Lauda, na Fórmula 1. Papai SEMPRE ficava em pé, mão ao peito, para cantar nosso hino. Fato que me inspira até hoje (acho ridículas aquelas torcidas no estádio que ficam entoando seus próprios hinos e gritos de guerra na hora do hasteamento da bandeira, sobrepujando a execução do Hino Nacional). Porém, ele puxava em excesso os “Rs… Era até engraçado ouvi-lo: “OuviRRRam do IpiRRRanga as maRRRgens plácidas…”.
Por outro lado, quando algum brasileiro (especialmente políticos) fazia besteira, ele, que não era chegado a falar palavrões na minha frente (só em inglês, mas esquecia que ele mesmo me ensinou a língua desde cedo, kkk), soltava seu principal xingamento: “Supulmanos cagados”. Sim, o “supulmanos” era, na verdade, a maneira raivosa como ele falava “sub-humanos”, expressão que denotava terrível crise de xenofobia contra os latinos, uma perdoável influência eurocêntrica advinda de suas origens. Aí, às vezes, ele percebia o próprio preconceito e se corrigia: “o Brasil é maravilhoso, mas tem umas pessoas que… deixa pra lá!”
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