Pouco antes da bomba estourar por aqui, eu comentei com algumas pessoas que eu temia pelo Brasil, porque ele é o país dos dois “Ds”: Desprezo ou Desespero. Se boa parte da população, sobretudo antes da reclusão, não levava nada a sério, dizia que era uma gripezinha de nada, que era uma coisa exagerada, ou chegava até ao cúmulo de imaginar que tudo foi arquitetado por alguém de esquerda para atingir o pum-pulha-presidente, a outra começou a protagonizar, especialmente após o início desta quarentena, uma corrida desenfreada a supermercados e farmácias, em busca de estocar suprimentos e remédios para si e sua família.
 
 
E esse Dilema (taí outro “D” – estou me sentindo reconstruindo os Perpétuos de Neil Gaiman) traz à tona o pior do brasileiro: o velho e setentista espírito de “levar vantagem em tudo” – a popular “lei de Gerson”, coitado, um ex-jogador de futebol que, por ter feito uma propaganda com esse bordão, ganhou esse carimbo injusto de criador da frase. Preços abusivos de álcool em gel, discussões em filas de supermercados por conta da quantidade de mercadoria levada, gente (?) que se aproveitou para comprar lotes de produtos para revender lucrando o dobro ou o triplo. Se esse péssimo costume nacional já irrita em tempos normais, imagine nestes de pandemia.
 
 
Eu comecei meu dia terceiro me lembrando disso. E preocupado com outras pessoas que moram sozinhas, porque, apesar dessa experiência ajudar nesse momento de isolamento social, nem todos possuem capacidade de conviver bem com a solidão. Pra mim, que gosto de ler, ver séries, ouvir música, e sou, exceção feita a um show de rock aqui e outro ali, um recluso por natureza, é relativamente simples aceitar a necessidade de ficar em casa e com pouco diálogo. Até produzo mais, como estas crônicas dignas das “Memórias do Cárcere”, de Graciliano – risos. Mas há pessoas que não lidam bem com isso.
 
 
Portanto, saí falando com algumas delas ontem, via redes sociais, assim como com outras que sei estarem em estado emocional debilitado, seja por doença, perdas familiares ou personalidade mais impressionável, mesmo. E asseguro: há muita gente que está bem mal. Ora, não é todo mundo que tem estrutura psicológica para viver in loco o poema “Circuito Fechado”, de Ricardo Ramos – se não conhece, leia, é bem curioso – numa versão hardcore: sem sair de casa. Sugiro, enfim, que meus leitores façam o mesmo. Falem com amigos, parentes e conhecidos que você imagina estarem mal. Provavelmente estão. E sua palavra amiga pode funcionar tanto quanto aqueles serviços telefônicos de proteção à vida. A empatia pode ser redentora, para ambos os lados.
 
 
Outra Dicotomia (“Meus” Perpétuos estão aumentando) aqui é a da responsabilidade com o outro. Enquanto médicos, enfermeiros e outros da Saúde estão arriscando suas vidas em prol da tentativa de frear essa onda pandêmica, outros, especialmente abusadores da fé, levam seus fiéis aos templos, vendem “álcool em gel ungido” por uma pequena fortuna e pedem dízimo em cartão, para não se contaminarem com as cédulas. Outras linhas religiosas te pregam discursos redentores via redes sociais, com correntes, terços, orações com pedidos de perdão ou salvação. E ai de você, se ousar argumentar sobre isso. Parece um mundo distópico, uma ditadura da fé: algo como um “Sombras de Reis Barbudos” (José J. Veiga) com toques espiritualistas. E assim, entre a Dúvida e a Doutrinação (opa!), a sociedade está equivocadamente sobrevivendo de extremos.
 
 
Só espero que não in extremis.

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