O mundo dos sonhos já trouxe inúmeras referências artísticas para a humanidade, desde o Morfeu, filho de Hipnos (daí hipnose, sacaram?), da mitologia grega. Algumas das que mais gosto estão presentes na personagem Homem de Areia, das histórias infantis de Hans Christian Andersen, em que a figura lendária joga areia nos olhos das crianças, para que tenham bons ou maus sonhos. Esse imaginário se repete e amplia nas histórias inigualáveis dos quadrinhos “Sandman”, de Neil Gaiman e na música “Enter Sandman”, da banda Metallica (som e vídeo muito recomendáveis para/após a leitura deste texto).
Numa versão mais radical, aprecio o conto fantástico “O homem de areia”, de E.T.A. Hoffman, em que nossa “doce” lenda tem a fama de simplesmente arrancar os olhos das crianças (na verdade, um subterfúgio sinistro que os pais usavam para obrigarem as crianças a fecharem os olhos e dormirem, com um correspondente lusitano maravilhoso, o João Pestana). Entretanto, nessa narrativa do alemão, o Homem de Areia não passa de uma ponte para o real foco do conto: a visão conturbada e dupla do protagonista, Natanael. Mesmo assim, vale muito a leitura.
Sonhos são intrigantes. Na noite passada tive pelo menos uns três. Não sei quanto a vocês, mas às vezes vivo experiências curiosas, neles. Primeiramente, nem sempre lembro (dizem especialistas que sonhamos todas as noites, embora nem sempre recordemos, então não existe tal coisa de: “não sonhei nada”). E isso, apesar de contraditório, já é uma experiência, pois quando “não sonhamos” é porque algo vazio nos ocupa a mente. Se isso é bom ou ruim, já não o sei.
Minhas experiências curiosas com sonhos remontam à infância. Aos seis anos, eu caí numa cacimba de doze metros, enquanto brincava de tirar-lhe a tampa e olhar dentro, no terraço de minha casa. A queda só não foi mais trágica porque, em meio à queda livre, bati o quadril em um semicírculo de ferro onde ficava o motor. Isso amorteceu a velocidade e o impacto final nos dois metros de água. Sem saber nadar, agarrei-me ao cano que puxava a água e esperei socorro. Porém, o interessante dessa experiência traumática foi a sensação de despencar dentro da escuridão. Eu me lembro nitidamente de cair rodopiando, como essas brincadeiras em que crianças fazem o movimento de “estrelinha”. Essa sensação me perseguiu nos sonhos por anos.
Já na adolescência, quando me tornei gótico e assíduo frequentador de cemitérios, outro sonho me era ainda mais frequente: era semanal. Sem dia marcado. Mas rotineiramente estava eu sonhando sendo enterrado vivo. Eu via uma claridade distante sendo coberta por areia e ir fechando, fechando… Quando a escuridão total se fazia, eu acordava. Essa claridade era um misto de portinhola de caixão e o vão que eu avistava lá de dentro da cacimba, a passagem por onde eu havia caído, na infância. O mais curioso é que, dessa vez, eu não me assustava; na verdade, gostava de repetir esse sonho, que esteve comigo até por volta dos 30 anos, a cada semana, como disse. E sumiu.
Outra coisa que me ocorria muito era ter um sonho bom, acordar, lamentar e me concentrar, dizendo, mentalmente: ‘Vou continuar de onde parei”. E dava certo! Recordo-me particularmente de um em que eu reencontrava meu pai falecido. Acordei e dormi de novo, com um próximo “capítulo” pelo menos 4 vezes, nessa noite. Por vezes, era com garotas que mexiam, involuntariamente, claro, em meus desejos reprimidos… Era muito bom voltar a elas…
Hoje não tenho mais as quimeras citadas. Coisas diferentes acontecem. A primeira é sonhar tropeçando e acordar chutando o vácuo, risos. Ou caindo e despertar agarrado à beirada do colchão, como se procurando apoio no abismo iminente, logo abaixo (aconteceu de eu chegar a desabar da cama). Ter um sonho todo em inglês também não é tão incomum. Todavia, um tipo recorrente é o que chamo em minha intimidade de “looping”: o mesmo sonho diversas vezes na mesma noite, seja bom ou mau. A tal ponto de, se estiver sendo ruim, eu dizer, dormindo (ou sonhar dizendo?): “Tudo bem, você está sonhando”. E as imagens retornam… repetidamente, como ondas que vêm e voltam, praticamente iguais… Se pensou em “Um sonho dentro de um sonho”, do mestre Edgar Allan Poe, eu também.
Por fim, o tipo de sonho que me fez falar sobre isso tudo neste ciclo pandêmico: ter um pesadelo tão pesado, tão hardcore, que fico, durante o sonho, repetindo: “Tomara que eu esteja sonhando”. Felizmente, na maioria das vezes, me dou conta disso e sigo o sono. Noutras, acordo em sobressalto para descobrir que, para minha alegria, era realmente apenas um mau sonho. Quem dera pudéssemos acordar deste pesadelo do COVID-19 e descobrir que nos enclausurarmos por tanto tempo tenha sido apenas uma obra de ficção noturna… Entretanto, é uma dura e cruel realidade.
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