“O Decamerão”, de Giovanni Boccaccio, “A máscara da morte rubra”, de Edgar Allan Poe, “A peste”, de Albert Camus, “Sarapalha”, de Guimarães Rosa. Sabem o que esses textos literários possuem em comum? A temática das epidemias ou pandemias. Enquanto Bocccacio e Poe criam sobre a Peste Negra, Camus retrata a gripe espanhola; e Rosa, a malária. E ainda poderíamos lembrar inúmeros invocações à febre amarela em José de Alencar, Lima Barreto, Aluísio Azevedo e tantos outros.

Entrar em quarentena (por enquanto, uma “quinzetena”) é como cair sem paraquedas num cenário de alguma das geniais narrativas acima. Ou, se os mais novos preferirem, algo semelhante a acordar ao lado de Rick Grimes em The Walking Dead.

Meu primeiro dia foi tranquilo. Afinal, era um alívio poder ter diminuídas as possibilidades de contágio, graças ao bom senso das escolas onde trabalho, que suspenderam as aulas para todos, alunos e funcionários (embora haja notícias de que outras, irresponsavel e egoistamente, dispensaram apenas os alunos, expondo funcionários e/ou professores a uma situação de risco, apenas por estarem “pagando o salário”).

Minha preparação foi tranquila, porque me preveni aos primeiros rumores de que isso seria necessário. Peguei apenas filas medianas no supermercado, mas nada de desabastecimento. Até um frasco de álcool em gel consegui, ainda a preço razoável. E só peguei um frasco, porque morar só me faz precisar apenas de um; uma consciência que muitos, infelizmente, não tiveram, deixando, neste primeiro dia (aí, sim), muitos locais com problemas de abastecimento deste e de outros produtos fundamentais para este retiro nada espiritual. Aliás está mais para uma retirada. Batemos em retirada contra um inimigo invisível, à la Lovecraft.

As últimas saídas foram pontuais: no dia anterior fui conhecer a nova sede da Editora onde presto serviço como membro do Conselho Editorial. Todos devidamente a um metro e meio uns dos outros e com álcool em gel na entrada da sala, sem ar ligado, de janelas abertas. E hoje precisei acompanhar o namorado da minha filha a uma viagem importante ao Shopping Iguatemi. Ar-condicionado no UBER, máscaras em nossos rostos (o ideal é que os que não estão contaminados não as usem, mas o ambiente fechado nos obrigou, e o calor estava de rachar).

Aliás, naquele shopping tive a primeira sensação explícita de que estaríamos vivendo uma situação conflitante entre economia e saúde. Em plena hora do almoço, pouquíssimas mesas ocupadas; porém, funcionários trabalhando, em que pese o estabelecimento ter diminuído o tempo de atendimento ao público. Mas me atrevo a dizer que havia três ou quatro vezes mais gente trabalhando que consumindo.

Contudo, tanto na ida quanto na volta, chamou minha atenção o número de comerciantes pequenos com suas portas abertas. E isso deve ser desesperador. Como se trancafiarem, se suas parcas vendas são sua sobrevivência? Então me veio à mente a necessidade de que a população opte por compras neles, como forma de ajudar, quando houver o produto específico e se puder pedir por telefone, de preferência – o que também coloca em risco outra categoria emergente: a dos entregadores freelancer. É, estamos sempre colocando alguém em perigo de contágio, não tem jeito. O que podemos é minimizar ao máximo esse risco e tentar ajudar a garantir a sobrevivência de quem não tem emprego fixo. Mas sair de casa, só em último caso.

Resta torcer que as notícias sobre pessoas que acham que tudo isso é bobagem, invenção ou exagero diminuam. E que elas não sigam a estupidez de um “Presidente da República”, que precisou ver vários de sua equipe e ele próprio submetidos a exames para poder tomar uma atitude (totalmente tardia, por sinal) de exemplo e orientação para a nação .

E vamos aguardar por um amanhã melhor.

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