Que atire a primeira pedra quem nunca quis ser um Dorian Gray, mas sem o ônus da perda gradativa do caráter. Não que a velhice me preocupe, já faiei disto aqui, anteriormente, mas há dias nesta quarentena em que preferimos não olhar ao espelho. As unhas (do pé, porque da mão eu roo) cresceram, o parco cabelo também, salientando a parte calva, o ventre nem se fala. Estou enorme. Pela manhã o rosto demonstra cansaço pelas noites mal dormidas, regadas a álcool. Só depois de meio-dia o rosto se ilumina, para a perspectiva de recomeçar a beber, no fim da tarde (às vezes até mais cedo). Mau hábito regado pelo ócio. Felizmente sou bom em retornos à normalidade, quando necessário.
 
 
A pandemia e sua consequente reclusão deixarão marcas inesquecíveis em nossos corpos. Pelo menos daqueles que são naturalmente sedentários. E nem adianta me censurar, pois isso, para mim, não é uma questão que me atinja a consciência estética, a não ser em raros dias como o de hoje. O que ainda pode me motivar a tentar alguma atividade física é a preocupação com a saúde, não a com minha já pouca beleza.
 
 
Porém, quem não gostaria, como o citado personagem de Oscar Wilde, ao menos nessa quarentena, ter suas formas intactas até que tudo isso termine? Mesmo não sendo nada vaidoso, bem que gostaria de me manter menos roliço. Cada um de nós tem sua zona de fraqueza visual, que gostaria de deixar intacta, com o passar do tempo. Muitas mulheres pensarão nos rostos sem rugas, ou também nas formas de seus corpos esbeltos. Nós, homens, se nos preocuparmos com alguma coisa quanto a isso, será realmente com barriga ou cabelos. Como eu, que a cada dia pareço um cosplay misto involuntário de Obelix com tio Chico, da Família Addams.
 
 
A sensação de despreocupação parece advir da percepção de uma certa futilidade alheia em se desesperar com tais coisas, visto que a primeira coisa a se fazer nessa pandemia é manter-se vivo. Afinal, depois de mortos emagrecemos e nossos cabelos se mantêm, ambos os processos de forma natural, mas não diria que vantajosa, com o preço da vida a pagar… Partindo desse pressuposto, vivam, gordura e calvície!
 
Desde que não sejamos paranoicos e criemos defeitos onde não existem. Um processo chamado de dismorfobia. É quando começamos a ver transformações e problemas físicos que não existem, de fato. Mas não estou me referindo a casos como o de Lord Byron, cuja beleza estonteante era destruída em seu ego por um mínimo manquejar, fruto de uma quase imperceptível deformidade em um dos pés. Estou falando de pessoas que realmente inventam algo que não há, como rugas, cabelos brancos e saliências. Mulheres, sobretudo, são campeãs em enxergarem-se obesas, mesmo sendo claramente da finura de uma Olívia Palito. É como se precisassem se ver Brutus, para manterem-se em forma.
 
Entretanto, isso, para quem de fato é gordo, é extremamente irritante. Mal comparando, é como aquele colega de sala da escola que se queixa a vida inteira de que vai ter um mau resultado, de que a prova foi um fiasco… e lá vem uma nota não menor que 9. Exceto pelos próprios modestos excessivos, todo mundo já teve companheiros de aula assim. Quantas e quantas vezes não fiquei me sentindo humilhado por amigos e, sobretudo, amigas, que ficavam relatando suas dietas e se queixando que estavam pesadíssimos, larguíssimos. Eu olhava para aqueles corpos finos e ficava me perguntando se era algum tipo de zombaria, provocação, ou se eu deveria esfregar os olhos para voltar a enxergar corretamente.
 
 
Então vem à tona um sentimento que não é muito bom: o de que aquela pessoa é soberba; ou ainda, que blasfema covardemente contra um dom que a generosa natureza lhe deu de não engordar. Sobe-nos uma raiva incontrolável, mas que, para não se transformar numa frase odiosamente desagradável, vira um comentário do tipo: “Emagrecer? Só se for para você entrar numa garrafa”. Se você ouvir isso, saiba que, na verdade, estamos é com muita vontade de lhe xingar: a você, a sua heresia e à humilhação a que nos submete.
 
 
A solução para quem é gordo, feio, ou com qualquer outro demérito da beleza padrão, mas também culto, é fazer como Byron o fez, mesmo não tendo razão para isso: transformar em Arte. O poeta aristocrata inglês fez daquele seu imperceptível manquitolar a razão de toda a desgraça de sua vida riquíssima e boêmia, passando a produzir incessante e produtivamente. A rejeição pelos padrões estéticos da sociedade dá ótimos poemas de amor não-correspondidos e algumas pérolas de contestação aos asquerosos livros de autoajuda ou autoestima. Não há coach que influencie alguém que transforma frustração em Arte.
 
 
Tudo isso escrevi pensando se no próximo café da manhã comerei pão de queijo ou nuggets, numa clara demonstração de que nem sempre sermos belos ou não é motivo de inspiração. A vontade de comer (porque não ouso chamar de fome, fome quem passa é o necessitado) hoje foi fonte criadora. Assim, também passo o tempo a não olhar para minhas formas, ao espelho. É melhor.

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