Ontem mesmo citei Flávio Migliaccio, em minha crônica. Um talentosíssimo ator que me acompanhou a infância nas “Aventuras de Shazan e Xerife”, quando este último personagem era por ele interpretado. Fez pelo menos uns 20 filmes (entre eles o “Boleiros”, comentado na diacrônica de ontem, e “Terra em transe”, de Glauber Rocha, um marco no chamado Cinema Novo brasileiro), 15 novelas e muitas peças de teatro, como a inigualável “Eles não usam black-tie”, do não menos talentoso Gianfrancesco Guarnieri.
 
O motivo de minha diacrônica de hoje está na dramaticidade do bilhete suicida de despedida de Flávio, deste mundo. O suicídio em si já é algo extremamente dolorido para quem comete, por ser o ápice da desistência. Para a família, então, devem ficar angustiantes sensações de fracasso e questionamentos tão assustadores, que nem ouso imaginar a autocobrança de seus membros sobre o que se deixou de fazer para impedir tamanha desgraça. Não pretendo ser mórbido, abordando esse tema, apenas quero averiguar, com vocês, a importância de certas coisas deixadas no ar pelo ator. Faço questão de reproduzir as palavras do bilhete, para em seguida começar minha análise. Aí vamos:
 
“Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos como tudo aqui. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este. E com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje! Flávio.”
 
85 anos jogados fora. Essa expressão me marcou muito. Como me dói ver alguém ter a sensação de que, não parte, mas TODA a vida de alguém foi atirada pela janela da existência. Não são os últimos anos, os últimos meses, nem mesmo uma suposta depressão momentânea causada pela pandemia. É uma dramática e dolorosa constatação de que a velhice, “neste país”, ele ressalta, aniquila tudo o que de bom foi vivido. E vejam que não estamos falando de alguém totalmente descartado da carreira. Ele chegou a trabalhar, nos últimos anos, nem que fosse com episódicas aparições, em programas e séries de TV.
 
 
O caos a que se refere Flávio, de ser velho no Brasil, pode ter várias interpretações: falta de apoio, de suporte, de reconhecimento enquanto ator… Mas reparem que ele diz: “como tudo aqui”. A desesperança de Migliaccio está claramente exposta no povo de um país que, de uns tempos para cá, assumiu seu lado mais cruel: o do preconceito. Todo e qualquer cidadão que não pertencer a um determinado padrão de cor, credo, status social, pensamento ideológico ou idade economicamente ativa será mortalmente condenado ao ostracismo ou, pior, atacado em sua moral. E em seu moral, também.
 
Foi esse o tipo de gente a que ele se referiu estar encontrando no país. Reparem no gerúndio. Não é pretérito, como em “toda vida encontrei”, não é presente, “sempre encontro”, é algo recente, mais atual, manifesto na expressão “acabei encontrando”. É tudo culpa de um pensamento brasileiro arraigado em sua estrutura e que estava adormecido fazia décadas, para, de pronto, ver-se representado e, com um orgulho hipócrita, reaparecer. Esse é o cansaço existencial de Flávio. Saber que algo que já deveria estar fazendo parte de um passado a ser riscado de nossa história retorna de forma tão contundente e massacrante deixou angustiado esse ser sensível e inteligente.
 
Finalmente, mais uma oração que me faz ter a certeza pessoal de que acerto em minha análise é a última: “Cuidem das crianças de hoje!” Entenderam o recado? Para mim, está explícito: não deixem que as crianças de hoje virem os adultos conservadores e preconceituosos que temos hoje, amanhã. Ensinemos valores de respeito, igualdade, justiça; não os contravalores de segregação, desprezo, ódio. Façamos de nossos filhos pessoas melhores que esses que hoje dominam a nação e que possuem o controle asqueroso sobre a intolerância, o deboche, a ofensa ao pensar diferente.
 
Toda essa desesperança se estende para a humanidade, quando o ator afirma que ela não deu certo. Contudo, o foco está aqui, neste país, neste antes oásis do pensamento livre, democraticamente tolerante e que tentou, com grandes falhas, é bem verdade, progredir no respeito ao próximo e a si mesmo. Mas tentou-se e conseguiu-se, em parte do processo. Hoje trabalha-se claramente para desfazer o que houve de avanço.
 
 
Flávio Migliaccio pode não ter sido um ator dito como “de ponta”. Certamente não foi o maior nome da dramaturgia brasileira. E, com mais certeza ainda, não deveria ter cometido esse ato tão devastador contra si e seus familiares. Porém, se era para sair de cena de forma dramática, contundente e com lições a serem dadas sobre como a maldade afeta a cabeça de quem tem o mínimo de bom senso, podemos dizer que seu “gran finale” foi memorável; irretocável. Digno dos gênios dos palcos da vida, mesmo diante da morte.

Comentário do facebook