Estava eu a refletir sobre o que escreveria hoje quando vejo uma profusão de mensagens e postagens, contra e a favor de manifestações que pediam, entre outras coisas, a reinstauração do AI-5, o Ato Institucional número 5, um decreto do período militar que extinguia a liberdade de expressão e restringia a imprensa, os partidos políticos e outras instituições democráticas. Curiosamente, ao serem impedidos de se aglomerar, por conta do Coronavírus (alguns também pediam o fim ou o relaxamento do isolamento social), os manifestantes começaram a reclamar por direitos e a acusar o governador do Ceará de ditador.
 
 
A primeira reação minha foi de incredulidade. Como eles não percebem a contradição de seu pedido? Se querem o AI-5 de volta, é exatamente para impedir toda e qualquer manifestação, tal qual aquela. Aliás, numa ditadura, quando eles começassem a se reunir, não haveria policiais olhando ou prendendo exaltados, como foi o caso. Ela já chegaria espancando e dispersando a multidão. Então, como você quer um ato ditatorial de volta, mas quer ter o direito de fazer a solicitação de maneira democrática, mesmo indo contra todas as determinações legais sobre saúde pública hoje necessárias?
 
 
Imediatamente me veio à mente Guy Montag, o bombeiro queimador de livros e perseguidor de livres pensadores no romance “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury. Você é um bombeiro causando incêndios e achando que está corretíssimo, tem cabimento? Porém, a maior diferença está no fato de que, ao longo da obra, ele vai se tornando alguém diferente (evitarei spoilers) e já não tenho a mesma esperança, no tocante às pessoas que pedem o retorno dessa aberração histórica. Caiu por terra minha teoria de inocente ignorância dos manifestantes. Então, parti em busca de uma outra possível resposta.
 
 
E encontrei. Dura realidade, mas encontrei. Na verdade, o que esses manifestantes desejam é o cerceamento não de toda a liberdade, mas só a de quem pensa diferente deles. Durante a Ditadura Militar, fez-se o controle compulsório da população, sob a desculpa de uma suposta tentativa de implantação de comunismo no Brasil que jamais existiu, exceto na cabeça de um grupelho de rebeldes que se diziam revolucionários, mas que na verdade eram tão ditatoriais quanto os algozes. Em volta daqueles, centenas de pessoas bem-intencionadas que desejavam apenas o fim de um regime que, enquanto tentava passar uma ideia de restauração da ordem e patriotismo, na verdade praticava atos de selvageria, autoritarismo e lavagem cerebral.
 
 
Muitos da época que não eram envolvidos com nenhum tipo de pensamento político ou que acreditavam nas falcatruas intelectuais desonestas dos opressores são os mesmos que pedem o retorno àquelas práticas desumanas e vergonhosas. Essas pessoas se casaram, tiveram filhos e criaram suas famílias sob princípios rígidos de uma moral preconceituosa e elitista, patriarcal e misógina, homofóbica e debochada. E essa “moral” passou a ser verdade inquestionável para todos os que ali conviviam sob a batuta do “chefe da família”, algumas vezes alguém sem dignidade alguma para apontar o dedo para ninguém, pois fazia tudo o que condenava, mas às escondidas. Todavia, até aí, tudo “bem”. É democrático, é direito individual que cada um crie sua família sob os princípios que acredita serem os melhores.
 
 
Com o fim da ditadura e o natural processo de liberdade de expressão e pensamento, classes antes oprimidas por esses conceitos de “moral”, como mulheres, homossexuais, negros, indígenas e todo o tipo de minorias, começaram, gradativamente, a ter voz e vez. Isso veio causando revolta nos que possuíam o espírito tradicional, pois a condição de status quo dominante e indiscutível foi diminuindo. E o pensamento antes imperante passou a ser vexatório, enquanto os excluídos iam ganhando cada vez mais espaço, nem sempre acertando a mão na conquista dele, é bem verdade.
 
 
Porque muitas vezes essa conquista veio somada a décadas de restrições e preconceito, o que deu a esses “ex-excluídos”, muitas vezes, um sentimento de revanchismo e de necessidade de se autoafirmar da mesma maneira opressora com que foram humilhados. Como dizem, de forma popular, para eles, “o jogo virou”. Assim, quase como noutra sociedade distópica, mostrada em “A revolução dos bichos”, de George Orwell, os humilhados se tornaram ditadores também, não na política, mas na forma de como deveriam passar a ser tratados, quem poderia falar sobre e por eles, como, quando e onde demonstrarem toda sua indignação justa acumulada por tanto tempo de castração. E aí, sabemos que quando sua causa passa a ser menos importante que sua necessidade de imposição, as consequências são, em geral, desastrosas.
 
 
 
Então veio o movimento ondulatório contrário. Os antes opressores, agora se sentindo acuados pela onda de ataques dos antes oprimidos, fecham-se num universo paralelo, favorecidos pelo fato de que, além de tudo, tenham sido historicamente blindados por instituições como o Estado e a Igreja. E aguardaram o momento da sua “redenção”, assim como fizeram os desvalidos de direitos ao longo da nossa história, mormente durante a Ditadura. Essa redenção chegou personalizada na figura de um candidato.
 
 
Jair Bolsonaro, que irônica e fatalisticamente ainda teria como nome do meio “Messias”, virou o porta-voz desses acuados. Seu estilo agressivo e contundente, com abertas declarações contra todos os tipos de minorias, ecoou como música para quem ansiava por um mártir que lhes representasse e trouxesse de volta o poder do discurso antipopular e elitista. Antes piada de mau gosto e démodé, foi ganhando espaço e notoriedade. Mais que isso. Admiradores. Fãs alucinados de alguém que, finalmente, falava corajosamente tudo aquilo que eles, por vergonha do julgamento da sociedade mais aberta e menos preconceituosa, ocultavam dentro de seus lares tradicionais.
 
 
Junte-se a candidatura de Bolsonaro ao incontestável desmoronamento do PT, que comandava o país por quase 16 anos, mas que caíra num abismo de desgaste popular por conta de sua gigantesca corrupção e alianças inconsequentes, e temos o cenário ideal para o ressurgimento dos que já tinham perdido a esperança de recuperação das rédeas do domínio ideológico social e comportamental. A eleição democrática foi o gongo para a consumação da virada conservadora.
 
 
 
Todo esse recapitular histórico dos últimos anos eu fiz para mostrar que o tema motivador desta diacrônica – os pedidos pelo AI-5, ainda que reclamando liberdade para fazê-lo – tem uma função explícita: denunciar que eles não querem uma ditadura para o país. Mas só para quem pensa diferente deles. Toda a liberdade para sua ideologia, nenhuma para o pensamento que, por alguns anos, se mostrou livre, porém incompetente para administrar sua satisfação pela redenção. O que querem esses manifestantes é que se impeça a possibilidade de reerguer-se o espírito questionador ao tradicionalismo. É claramente um movimento para voltar a impor um pensamento reacionário, sob a égide dos mesmos princípios de 1964: um combate a um comunismo que não existe, um patriotismo ufanista e acrítico, uma repressão contra o pensar diferenciado, uma necessidade de expandir sua escolha por uma formação individual e familiar conservadora para toda a sociedade, obrigando a que todos pensem como eles, ou desapareçam da sociedade. Esse é o real objetivo de todo o movimento pelo AI-5.

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