Hoje quero falar de saudade. Essa palavra só existente, com a sensação que conhecemos, em nossa língua. Aquele vocábulo que, de tão decantado, impossibilita citação a um autor somente, porque seria cometer injustiça a tantos outros. Um sentimento tão caro e, ao mesmo tempo, dolorido e agradável, que traz sabores, perfumes, lembranças de todos os sentidos corporais e emocionais, pois tudo isso leva a um estágio de melancolia, num misto de sorriso entredentes e lágrima contida no nascedouro da alma.
 
Aqui, enclausurado em minha casa e em meus pensamentos, sinto saudade dos meus familiares vivos e mortos: meu pai, minhas mães, meus irmãos, meus filhos, meus amigos. Lembro os sons de minha infância, como a voz cheia de sotaque estrangeiro de meu genitor, o latido do Bolinha e o miado do Chany. Sinto falta dos gestos e palavras doces e da comida de minhas mães. Dos papos sobre futebol com meus irmãos, de minhas manas reclamando, exigindo mudança de assunto… Do cheiro de bebês de meus filhos, de seus sorrisos, angústias e abraços. Da bebida e abraços compartilhados com meus amigos e amigas maravilhosos, aqui em casa ou em bares e cafeterias da vida.
 
 
Saudade das idas juvenis ao Cemitério São João Batista, nos tempos de gótico praticante, quando andávamos pela noite na ida, pela madrugada ou manhã na volta, sem medo de nada morto dentro, ou nada vivo fora do jazigo eterno dos que deste mundo haviam partido. Como era boa aquela paz, regada a cigarros, bebida quente e recitais de poesia ou música que vinha do toca-fitas…
 
 
Saudade dos áureos tempos da faculdade, em que minha turma se esmerava no prazer de viver um carpe diem cheio de cultura, fraternidade e muito hedonismo. Dos dias de intelectualidade do Coiote e da Academia da Incerteza, naquela ânsia de nos conhecermos e de sermos reconhecidos. Do prazer de viver uma liberdade recém-conquistada. Do deleite do saber percorrendo nossos cadernos e veias ardentes por sabedoria e lutas. Do cheiro úmido do Bosque das Letras, na UFC, quando chovia. Do cafezinho de seu Cabral. Do conhecimento e companheirismo respeitoso que nutria por meus professores. Das noites de farra filosófica e literária e da caminhada de volta para casa, meio ébrio, catando as pontas de cigarro que ainda conseguia acender, encontradas nos pontos de ônibus.
 
Saudade das viagens acadêmicas, do amor descoberto na aparente impossibilidade de um palco e de salas de aula transformadas em dormitórios, da festa, das mãos dadas, do luto no dia da morte de Drummond, dos beijos, passeio de jangada e das surpresas mútuas na hora do adeus, que renderam centenas de cartas, aventuras, planos e ações mirabolantes, sentimentos legítimos e profundos, frustrações e, ao final, afinal, uma amizade carinhosa e cheia de… saudade.
 
 
Saudade dos barzinhos, dos shows de rock, dos estádios, dos cinemas, dos sebos de livros e discos, dos teatros, locais que frequentei, mesmo sozinho, para o harmonioso prazer de meu amor pela Arte, pela visceral necessidade de ser senhor de meu destino, e de meus porres de desilusão e euforia. Saudade de olvidar meu rumo nessa rota traçada e retornar ao lar feliz por não ter perdido minha essência nem nos poucos prostíbulos pelos quais perpassei. Sinto falta até dos ônibus “corujões”, da madrugada, em que dormia tanto que acordava no ponto onde os havia apanhado.
 
 
Saudade das emoções em palcos, fazendo participações desafinadas, porém autênticas, com bandas como Biquini Cavadão, O Verbo, Reite, Jardim de Ferro, Concreto & Asfalto, O Grampo. De me meter a cantar sem saber em corais ou em momentos solo, nos palcos das escolas. Palcos em que também fui poeta, ator, radialista, regente e palhaço de minhas próprias agruras.
 
 
 
Saudade da sala de aula, de contemplar o sorriso ou o brilho nos olhares cúmplices de quem entende um poema, uma mensagem literária subliminar, uma ironia, uma metáfora, ou de quem simplesmente me adota como psicólogo, irmão mais velho, pai… De ver, enfim, meus alunos me fazendo reencontrar a adolescência que a cabeça tem, mas à qual o corpo não corresponde.
 
 
Saudade de abraços. Da gargalhada vinda das piadas idiotas regadas a café, na sala dos professores. Da sombra reconfortante no meio do sol escaldante na volta do almoço para a escola. Do cigarro tragado ao ar livre, em pé, numa esquina qualquer. Da namorada que por mais tempo comigo deu certo e dos grandes momentos juntos. Do olhar vago no caminho enquanto ando e escuto nos headphones um rock pesado ou depressivo. Do rissole de carne ou enroladinho de salsicha irresistíveis e de xingar o motorista que desrespeita a faixa de pedestres.
 
 
 
Saudade até do que não vivenciei e de quem ainda hei de conhecer.

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