Esta crônica será em formato de carta. Confesso não saber se já tentaram isso antes. Sei que cartas pessoais de gente como Rubem Braga, Gilberto Freyre, José Saramago, Mário de Andrade, Pedro Nava, Antonin Artaud e José Lins do Rego são tão geniais quanto crônicas. Nesse sentido, além dos citados, recomendo duas obras, em particular: “Correspondências”, que traz um delicioso sem fim de missivas de Clarice Lispector para outros intelectuais da sua época. E “Drummond e Alceu”, em que o poeta mineiro (aliás, ótimo cronista, também) dialoga em forma praticamente literária com o crítico carioca Alceu Amoroso Lima.
 
Porém, crônica em forma de carta não me lembro de ter visto. De qualquer maneira, se essa mistura já existir, é rara. E eu sou chegado a uma dificuldade. Para que entendam a ideia, estarei escrevendo uma carta para que meus filhos, Iasmyne e Emanuel, leiam daqui a 20 anos. Eu não devo chegar aos 70, mesmo escapando desta pandemia. Então, está de bom tamanho.
 
“Para meus amados Iasmyne e Emanuel
 
Filhotes, antes de mais nada, papai ama vocês. Que isso fique claro, embora eu já muitas vezes tenha dito, seja por palavras, gestos ou pedidos de perdão. Esta carta tem por objetivo lembrar a vocês coisas importantes pelas quais vocês passaram para chegar até aqui, 2040.
 
Iasmyne, você é uma vitoriosa. A essa altura eu espero que esteja realizando, aos 47 anos, o sonho de morar e trabalhar na Europa como psicóloga. Em 2020, você superou duas loucuras: seu quarto de ano de luta contra um câncer devastador e uma pandemia que te deixou triplamente em risco, pois você estava no hospital, quando os primeiros casos começaram a estourar, e teve que voltar para lá por mais duas vezes – sempre ao lado da valente de sua mãe – até ficar forte o suficiente para se recuperar em casa e conseguir uma cura para o mal maior. Espero que tenha confirmado em sua cabeça o que eu sempre soube, e acho que você também. Você é maior que a Fênix, dos X-man. Porque ela terminou sucumbindo ao próprio poder. Já você fez dele a sua superação.
 
Emanuel, que crueldade também o que te aconteceu. Do “alto” de seus quase 13 anos (seu aniversário é daqui a quatro dias, 18), teve de encarar tantos dias enfurnado dentro de casa. Logo você, que ama tanto a liberdade de bater bola, andar de bicicleta e empinar pipa, de não querer saber de mais nada além de curtir a vida (pois é, faltou gostar de estudar, mas acho que hoje você já sabe o quanto isso importa). Porém, eu tenho certeza de que isso te deu uma dimensão de valorização do amor ao próximo, à família. Numa vida meio Miguilim, icônico adolescente de Guimarães Rosa, você já deve ter conquistado muita coisa, mas ainda tem muito que aprender, mesmo com 33, hoje. E não se frustre se não tiver sido o Messi que sonhou ser.
 
 
O pai de vocês dois foi meio que um Lawrence Breavman (“A brincadeira favorita”, Leonard Cohen), com um pouco menos de estirpe e um pouco mais de bondade na alma – não, não darei spoilers, leiam. Entre erros e acertos, tentei. Falhei com as mães de vocês, mas elas comigo, também. Todavia, na dúvida, eu sei que sou muito difícil: considerem-nas bem menos culpadas. Se bem que, com a idade que possuem, vocês já sabem que relações findadas não são unilateralmente culpáveis. Sejam felizes, casem. A não ser que, diferentemente de mim, percebam mais cedo que gostam de relacionamentos sérios, mas não sob o mesmo teto. Nesse caso, fujam do convívio compartilhado como Hannibal Lecter foge de seus investigadores.
 
Se tiverem que passar por outra doença no estilo do Covid-19, já terão tido essa experiência antes. Cumpram. Sigam à risca as determinações de quem entende de saúde. Ignorem, principalmente, economistas, empresários e qualquer tipo de guru espiritual. Só pensam no bem de suas instituições e em dinheiro. Fiquem com a sua saúde e preservem a de quem vocês amam.
 
Sejam vocês mesmo, SEMPRE. Aceitem seus defeitos e tentem manter-se na verdade, por mais que doa. Eu fiz isso na maioria das vezes, mas nas raras ocasiões em que tentei me poupar e, principalmente, poupar os outros, enfiei os pés pelas mãos. Foi preciso chegar aos 50 anos para encerrar definitivamente com as pequenas ações que nem pareciam mentira, de tão bem-intencionadas. Acreditem: só pioram as coisas.
 
E, finalmente, perdoem. Perdoem quem erra, perdoem-se quando errarem. Exercitem isso eternamente. E comecem por perdoar este pai meio incompetente, meio ausente, às vezes, nada criança e muito cheio de erros. Mas que, com certeza, não errou em amar vocês todos os dias enquanto viveu.
 
Não sei se serei um grande escritor, algum dia. Talvez estas crônicas nunca saiam dos meus arquivos (que, espero, vocês um dia publiquem, se eu não conseguir ou se não achar uma vítima para a ela dar essa missão). Não tem problema. Minha maior e melhor obra de Arte já foi publicada nos compêndios do universo: vocês dois.
 
Sejam felizes, sem passar por cima de ninguém. E mais nada. Já terão cumprido sua missão.
 
Papai ama vocês.”

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