Hermes Deadends olhou diante de si. A mesa lotada de pequenos objetos do seu dia a dia, para que ele tivesse a certeza de que saberia onde encontrá-los. Os mais importantes ao alcance da mão, os secundários a uma esticada de braço ou girada ao redor do móvel. Pela porta entreaberta, ao lado, a visão de um mundo escuro, de uma rua pouco iluminada e de um prédio magnífico, prestes a ficar em ruínas, mas que não perde seu encanto.

De súbito, a identificação. Assim ele o era, também. Hermes, prestes a arruinar. A ruir. Falta-lhe luz, seu mundo é sombrio. Não que isso lhe desagrade, mas também não inspira confiança, tal qual o transitar pela rua onde mora, após determinado horário. E ele também não se confia, em certas horas, especialmente durante o torpor da embriaguez. Qual um bêbado costurando a tal rua escura de uma calçada a outra, ele cambaleia entre os extremos de euforia e profunda tristeza sem o menor equilíbrio, precisão ou mesmo consciência. E urina na parede do lado da obra magnífica, porém sem vida. Como ele. Ele urina nos muros do próprio coração. E o xinga, com imprecações de um bêbado que ama e odeia as amuradas que tem.

Ainda assim, sente-se uma obra rara, feita por arquitetos e engenheiros que passaram por sua vida e tentaram lhe dar o melhor acabamento. Ele, sim, foi quem cuidou mal da estrutura, e o acabamento está em vias de ter um desfecho… um outro tipo de acabamento. Não que ele venha a derrubar o prédio, os alicerces duros e concretos sobre o qual fora erigido, à custa de muita dor e percalços. Pés descalços nas calçadas pétreas que cercam seu prédio em decadência, assim eles andaram para todo lado, feridos e achatados pelas pontiagudas experiências de sofrimento, até que cada um desses pés ficasse como ele: chato.

Todavia, tal qual o prédio, ele é imponente; não talvez para quem passa pela rua lateral, porque em sua rua escura ninguém ousa trafegar (e ele até prefere, pois de gente covarde quer distância), mas para si mesmo. A imponência de um prédio em ruínas é como a majestade de um rei destronado: não se perde. Ao contrário, empertiga-se. Brota-lhe de suas colunas e de seus interiores uma fantasmagórica rigidez de caráter, de quem diz: não caio, não cerro, não cedo, tão cedo. Assim era Hermes Deadends: decadente, mas inabalável; alquebrado, mas teimosamente de pé; destroçado, mas confiante em sua missão cumprida. Altivo, apesar de tudo.

Deadends é como se fora a majestade de um castelo a um dia de ser atingido por catapultas exteriores. Não indestrutível, mas só assim atingível. Em seu redor, um fosso impede que lhe invadam. Ao mesmo tempo, tal proteção igualmente lhe dificulta identificar-se com o mundo, ausentar-se de seu conforto doloroso. As pontes levadiças são muito pesadas e trabalhosas para se deitar e reerguer. Como as noites de Hermes. Um peso para dormir, outro maior para acordar. E as pontes, além de penosas, estão enferrujadas em suas dobradiças, sem óleo; o denodo para utilizá-las é mais que desgastante, é enfadonho. Melhor não sair.

Afinal, para Deadends não há saídas, mesmo. Sem esforço, pegou o cigarro, o cinzeiro, o copo que estavam à mesa. Brindou ao prédio que a sua vista alcança pela fresta da porta, a uma distância segura. Deu um gole, uma tragada, soltou a fumaça para o ar; ela tomou a forma circular de uma coroa.

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